Hoje, escolhi um tema um pouco diferente do usual. Ao invés de um filme, escolhi a música como tema. Os algoritmos do Instagram e do YouTube me enviam conteúdos que identificam como politicamente alinhados comigo e, com isso, tenho me deparado com músicos e letras que são bem interessantes e refletem o atual momento histórico, cada um à sua maneira. Resolvi, assim, refletir um pouco sobre o assunto.
Dois exemplos que me deparei são do “country” estadunidense. Encontrei canções que expressam a experiência da classe trabalhadora deste país, ainda que de forma fragmentada e politicamente ressentida. Um dos mais notáveis é a música Fuck This Job, de Wheeler Walker Jr., que alcançou quase oito milhões de visualizações desde seu lançamento.
Ela dialoga diretamente com um público formado majoritariamente por trabalhadores chamados em seu próprio país de “rednecks”, ou seja, aqueles que vivem nas cidades e no interior rural do país, formados majoritariamente por brancos. Através dessa música, suas vozes ressoam em uma terra que ainda sente os efeitos do apartheid que durou mais de um século. São os trabalhadores que, em boa parte, também compõem a base eleitoral de Donald Trump.
A letra é um colorário de palavrões em língua inglesa. Se você está tentando aprender esse lado do idioma, vale estudá-la. Ela explicita, sem rodeios, o ódio ao trabalho assalariado, ao patrão e à lógica do lucro:
This nine to five can suck my cock
I’d rather eat shit than punch that clock
Monday through Friday is a hassle
Everybody here is an asshole
A escatologia também tem outro alvo: é uma afronta direta à censura que, tal qual importamos por aqui, é usada pelos adeptos do decadente “politicamente correto” do partido democrata. O refrão gruda no cérebro e forma um grito de revolta ao regime de metas, à disciplina do relógio, à alienação cotidiana:
Fuck this job
Fuck you boss
Fuck your profit
And fuck your loss
Aqui, algo raro na cultura popular americana, o lucro é nomeado como inimigo e a coragem de dizer, com todas as letras, aponta que o descontentamento social está ganhando voz de uma forma que até pouco tempo era impensável, ao menos nesse século. O trabalhador anônimo, o ponto de vista da música, sabe que produz e que um outro se apropria.
O problema está no contexto geral. A percepção não se transforma em consciência política. Ao longo da letra, o conflito se dissolve em insultos aos colegas (ausência de solidariedade), escatologia, sabotagem e fantasia de revanche:
I pissed in the coffee pot
Took a big dump in the parking lot
Hid a dildo in the drawer
Kiss my ass, I’m out the door
A saída imaginada não é coletiva, nem política. É o desejo de ir embora, não importa o custo dessa ação. É, no final, uma música sobre ressentimento e sobre o desejo de chutar o pau da barraca. Quem nunca passou por isso?
Trata-se de um ressentimento legítimo, mas sem mediação política, torna-se apenas um desabafo. Esse vazio de respostas é a porta de entrada para que a extrema direita atue e capture corações e mentes em busca de catarse. Não falta revolta. Falta organização, sindicatos, partidos políticos revolucionários que possam dar rumo a essa percepção da realidade.
Outro exemplo interessante é o da cantora Carsie Blanton. Sua música também sertaneja Ugly Nasty Commie Bitch reúne frases que visam afrontar a moral cristã. No entanto, aqui, ao contrário do exemplo anterior, há um deslocamento. O comunismo é nomeado, ainda que de forma provocativa. A música assume caricaturas produzidas pela direita e as exagera:
I’m an ugly nasty commie bitch
I moisturize with the tears of men
Stir my tea with a crucifix
Aqui existe consciência da guerra cultural. A cantora sabe que ocupa um campo político e responde ao ataque assumindo o insulto. O comunismo aparece como identidade performática e política:
If you’re a dumb redneck & I’m a commie bitch
Maybe nobody wins but the already rich
Ao assumir o “eu lírico” de feminista radical identitária, a cantora toca uma verdade decisiva: na polarização cultural, quem vence são os ricos. A chave, então, é não aceitar totalmente seu ponto de vista, mas compreendê-lo dentro do contexto cultural que permitiu que a letra fosse imaginada e transformada em canção.
Ela mostra que, se de um lado está o “redneck” humilhado e, do outro, a “commie bitch” provocadora, no topo, intacta, está a classe dominante. Se a luta permanece na disputa pelo comportamento socialmente aceitável, o capital segue preservado e governando. Vale checar também a letra de Rich People.
Se os americanos estão achando suas vozes dissonantes, o coletivo turco Red Creators é um exemplo louvável. Toda semana eles lançam músicas ilustradas por imagens criadas por inteligência artifical. O ritmo da maioria é o heavy metal e as bandas têm como músicos e cantores figuras históricas recriadas por IA como Marx, Robespierre ou Rosa Luxemburgo. As letras não buscam refletir catarse ou a guerra cultural pela identidade, mas a consciência de classe explícita, histórica e coletiva nas figuras ali representadas.
Em Por que não?, a letra é construída inteiramente a partir de perguntas que atingem o núcleo do capitalismo. A música é cantada em 24 idiomas (inclusive o português) por figuras jovens. A identidade aqui é de classe e está relacionada aos países representados por seus idiomas e não a um gênero ou cor da pele:
Por que aquilo que plantamos e aquilo que criamos se torna propriedade de outros?
Por que o conforto de uma pequena minoria se apoia no sofrimento da maioria?
A virada ocorre quando o coletivo se afirma:
Somos nada? NÃO!
Não somos nada: somos tudo.
Somos nós que criamos tudo.
Nossa voz é de milhões.
Não há indivíduo, tão valorizado pela pequena-burguesia da esquerda ongueira em busca de ascensão social, que mudou de nome e agora se chama “inclusão social”. Há classe. Há maioria. Há trabalho como fundamento da riqueza social.
Em Socialism is Love, reggae de Max Romeo (1974) e ilustrada por uma linda animação recheada por massas de trabalhadores em celebração e bandeiras vermelhas, o socialismo aparece como valor humano coletivo. O resultado é de uma esperança contagiante:
One man have too many / While too many have too little
Socialism don’t stand for that
A contradição material é nomeada. O antagonismo existe. Não há conciliação com os ricos. Esse avanço se radicaliza em Dialectical Fire, onde Marx canta, Lênin toca guitarra, Stalin bateria em uma banda de metal na qual o materialismo histórico deixa de ser referência e passa a fazer parte da própria letra da música:
I see the world through history’s lens
A clash of classes that never ends
The bourgeois feast while the poor toil below
(Um parêntesis: aparentemente Stalin representa a figura do grande matador de nazistas para o Red Creators, uma contradição).
Na linda People’s Swords, Robespierre e outros revolucionários dão voz a uma Revolução Francesa que é retirada do museu liberal e devolvida ao seu sentido original: uma guerra de classes e o último prego no caixão do feudalismo. A música afirma sem ambiguidade:
They feast in gold halls, we bleed in the street
We do not ask, we do not plead
We take back what you stole in greed
A legalidade é desmascarada:
You wrote your laws with blood and chains
E a neutralidade é denunciada:
Your silence is treason
Your wealth is a crime
O refrão é um coral que afirma a força coletiva e a irredutibilidade de gesto revolucionário:
You can’t buy us
You can’t break us
You can’t bend the steel we forged. We stand unshaken
Poor but awakened
You can’t stop the people’s sword.
Associado a ele, há um chamado coletivo:
Now we rise
O uso da inteligência artificial pelo Red Creators não é fetichista. Trata-se da apropriação consciente de uma nova força produtiva a serviço do momento histórico atual e da agitação política. Onde há consciência de classe, até a tecnologia pode ser subordinada à luta. Eles falam disso no excelente vídeo A IA responde às acusações.
Essa comparação revela algo essencial. Nos Estados Unidos, o sofrimento fala, mas ainda fala sozinho. Sem direção política, o ressentimento vira trumpismo ou guerra cultural estéril. Onde há consciência, a arte volta a cumprir sua função de representar o movimento da história. Reforça também que o momento polarizado em que vivemos também está sendo disputado por forças da classe trabalhadora mais conscientes e progressistas, inclusive nos Estados Unidos.
No Brasil, o engajamento mais consciente ainda passam longe de uma arte mais consistente, sintoma do atual estágio da disputa política nacional. Nem o ressentimento é nomeado. Na direita, o sertanejo só se ocupa da sofrência escatológica do amor perdido. A esquerda pequeno-burguesa opta pela colonização identitária. Um vídeo no Instagram me indicou a banda carioca El Efecto que usa pronome neutro na música de inspiração cubana La Comuna. O verso “trabalhar todes” já nasceu velho.
No entanto, sabemos que o povo produz, mesmo que o algoritmo não nos indique. Há muito nas periferias, no samba, no candomblé, no funk e até aqui no PCO, como a banda Revolução Permanente. Está mais fácil ter acesso a conteúdo com mensagens cada vez mais diretas. Talvez por isso mesmo queiram censurar tanto as plataformas digitais.
Por fim, é bom lembrar que o ressentimento pode virar à esquerda, mas não espontaneamente. Sem organização, partido e horizonte revolucionário, ele se dissolve ou é capturado pela direita. A arte não antecede a luta de classes, mas a acompanha. Quando abdica desse papel, não ilumina o presente. Ajuda a manter a escuridão.





