Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Melodrama e ousadia em Quando as Cegonhas Voam

O filme é uma reflexão sobre a guerra como uma ruptura histórica que só pode ser enfrentada por meio da reconstrução coletiva da vida e do futuro

Nesta última coluna do ano, escolhi o filme russo Quando as Cegonhas Voam, lançado em 1957 pela Mosfilm. A obra ocupa um lugar importante na história do cinema soviético. Foi realizada durante a liderança de Nikita Khruschev, participante da revolução, que subiu ao poder após a morte de Stalin e ficou conhecido por sua política de reformas e de abertura.

Dirigido por Mikhail Kalatozov, o mesmo diretor da obra-prima Soy Cuba (1964), sobre a Revolução, o filme aborda a Grande Guerra Patriótica a partir de um melodrama que foge das exigências do realismo socialista, mas, ao mesmo tempo, mantém a ousadia na forma. O longa desloca a experiência da guerra do campo de batalha e da elegia da vitória para o terreno da vida cotidiana, ou seja, daqueles que ficaram longe do front. Se destaca por uma cinematografia e uma fotografia em preto e branco primorosas, principalmente nos movimentos de câmera que muitas vezes acompanham o ponto de vista dos personagens, como na cena em que a protagonista abre uma porta para descobrir que o apartamento de seus pais havia sido completamente destruído em um bombardeio.

O enredo conta a história de Verônica (Tatiana Samoilova) e Boris (Alexei Batalov), jovens apaixonados que se separam quando os nazistas invadem a União Soviética. Boris se alista voluntariamente e parte para o front. Veronika permanece em Moscou. No meio disso tudo, várias peripécias narrativas estabelecem o sofrimento que virá: os noivos não conseguem se despedir adequadamente, uma carta fica perdida, a falta de notícias gera angústia e a morte acaba mudando a vida para sempre. Deslocada e atravessada pela violência, ela acaba se casando com Mark, primo de Boris, em uma união marcada pelo seu sentimento de culpa. 

Em 1958, o filme venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, tornando-se o único filme soviético a conquistar o principal prêmio do festival. Além do impacto da guerra no cotidiano das pessoas, ele mostra como suas vidas são organizadas, no contexto socialista, nas figuras das famílias dos dois amantes. Antes da guerra, o futuro parecia ao alcance dos dois: ela planejava estudar arquitetura, ele trabalhava em uma fábrica. Seu pai era médico. Ambas as famílias moravam em apartamentos modestos, espaços divididos com múltiplos parentes: Boris dividia o quarto com Mark, seu primo pianista, que assediava Verônica sempre que podia. A representação busca mostrar a vida comum dentro de um sistema econômico diferente do capitalista. Verônica vai para a faculdade, nos anos 1930, como opção normal na vida de jovens como ela. O cotidiano se reproduz a partir de vínculos coletivos, como a família, o estudo, o trabalho e a cidade. 

Kalatozov usa os cenários de maneira estilizada. Os amantes são apresentados a sós em uma Moscou totalmente vazia de pessoas. Uma praça onde eles veem as cegonhas voando se torna, depois, o lugar da guerra, com suas estruturas de aço bloqueando a livre circulação. A morte de Boris não é um tipo de espetáculo encenado para a câmera como em um filme de ação. Ouvimos o tiro, mas não vimos de onde vem. Também não há sangue, só o que o ator nos dá, no meio de um cenário desolado. É quase um teatro para uma câmera bem viva.

Aqui, gostaria de fazer uma comparação que me ocorreu ao assistir ao filme. É possível perceber alguns pontos em comum entre Quando as Cegonhas Voam e o melodrama de Hollywood sobre a Guerra Civil americana E o Vento Levou (1938). Em especial, há uma semelhança física e psicológica entre as protagonistas Verônica e Scarlett O’Hara (Vivien Leigh). Ao enfrentar uma guerra devastadora, Scarlett percorre um arco aparentemente semelhante: perde o mundo protegido que conhecia, enfrenta a escassez e sobrevive. Mas o sentido dessa sobrevivência é radicalmente distinto.

Scarlett inicia sua trajetória como filha da aristocracia rural sulista e emerge da Guerra Civil como uma burguesa liberal, adaptada à nova ordem econômica. No universo do filme, o casamento é o principal mecanismo de reprodução da vida cotidiana. Mesmo quando Scarlett se torna empresária, administra terras e explora trabalho, sua sobrevivência continua mediada por alianças matrimoniais estratégicas. Casar-se é garantir a vida  material e social.

Enquanto em E o Vento Levou, a Guerra reorganiza o mundo de modo a reafirmar a ideologia capitalista e a adaptação individual, em Quando as Cegonhas Voam, o conflito destrói um modo de vida que precisa ser reconstruído a partir do coletivo. Scarlett é o melhor exemplo de superação da adversidade pelo caminho do heroísmo individual. Veronika supera pela força do coletivo ao seu redor, que não a abandona.

Nesse sentido, o melodrama soviético de Kalatozov revela valores diferentes da produção hollywoodiana. É como se o diretor, escolhendo o melodrama, oferecesse a nós uma nova forma de ver uma história parecida, agora em um contexto socialista. A luta pela sobrevivência não é celebrada como virtude em si, mas marcada pela culpa e pelo desencaixe. No seu gesto final, Scarlett volta para casa sozinha, mas triunfante. Veronika, ao contrário, já está em casa. Na estação de trem, ao distribuir as flores reservadas ao seu falecido noivo aos que celebram, ela mostra que está pronta para a nova vida que surge. Isso inclui dividir com as pessoas as novas possibilidades que se abrem.

Esse é o grande trunfo do filme soviético: nos mostrar um diferente ponto de vista e nos fazer compreender a importância de pensar a guerra não como prova moral do indivíduo isolado, mas como ruptura histórica que só pode ser enfrentada por meio da reconstrução coletiva da vida e do futuro.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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