Na primeira cena de Luzes da Cidade (City Lights, 1931), uma estátua é solenemente inaugurada por autoridades em um evento público em homenagem à prosperidade e à paz. Discursos são feitos, uma bandeira é hasteada, a multidão aplaude. Mas, quando o pano que a cobre é retirado, ali está, dormindo entre as pernas da estátua, um mendigo. É o personagem de Chaplin, o Tramp (Vagabundo), arrancado do sono pelo hino nacional, deslocado, ridículo, mas também revelador. A cena funciona como uma declaração de intenções do diretor: a presença de Carlitos quebra com a hipocrisia e mostra a contradição da farsa capitalista em tempos de crise: enquanto a classe dominante e os agentes que ela aluga para servi-los celebram uma paz e uma prosperidade abstratas, materializadas em uma estátua esteticamente grotesca, a miséria concreta aparece para ridicularizar e expor suas intenções.
É impressionante como o filme é atual. Pensemos que hoje os mesmo hipócritas jogam na nossa cara a “defesa da democracia”, igualmente abstrata, enquanto pisam no pescoço de todos com a mesma violência que, naquela época, desembocou na II Guerra Mundial poucos anos depois. Infelizmente, no atual momento histórico, não há um só cineasta que consiga resumir de maneira tão clara e concisa a conjuntura social e histórica na qual ainda estamos imersos com o mesmo brilhantismo de Chaplin e de seu filme de 1931. Mais do que isso, a cena mostra clareza, objetividade, didatismo e humor em cada gesto do personagem tentando descer da estátua e escapar da polícia. Tudo feito com pantomima, a arte clássica dos palhaços, bufões e renegados. Carlitos é esse personagem e colocá-lo como protagonista é a grande lição que Chaplin deixou para nós.
Lançado nos anos da crise capitalista que ficou conhecida como a Grande Depressão, Luzes da Cidade é um dos filmes mais célebres do diretor inglês, que escreveu, dirigiu, produziu e protagonizou a obra. Apesar do avanço do cinema falado, ele insistiu em manter o filme mudo por entender que o riso, o gesto e a imagem comunicam de forma mais direta com a audiência. Influenciou as teorias do Bertolt Brecht sobre o teatro épico e as de Serguei Eisenstein sobre a forma e o sentido do filme. A crítica da época se dividiu: muitos viram a obra como um anacronismo, outros aclamaram sua beleza e emoção. Hoje, é unanimemente reconhecida como uma das maiores criações da história do cinema.
Apesar de, no Brasil, chamarmos o famoso personagem de Carlitos, Chaplin o utiliza como um personagem-tipo, daí não ter nome ou simplesmente ser apelidado de Vagabundo – figura que apareceu ainda em seus primeiros curta-metragens na década de 1910, durante a I Guerra Mundial. Em Luzes da Cidade, ele é um personagem não cooptado pelo sistema, apesar das enormes dificuldades, e é irresistivelmente movido pela paixão e pela empatia. Ao ser o protagonista, obriga a audiência a ver o mundo pelos seus olhos de representante da classe trabalhadora jogada à margem da ordem social. Muitos até podem se identificar com ele. Sua realidade social sempre dá aos filmes um tom agridoce.
No enredo, Carlitos se apaixona por uma jovem cega (Virginia Cherrill) que vende flores nas ruas. Ela, por uma série de motivos que estão na base do uso do som durante o filme todo, acredita que ele é rico. Para ajudá-la a pagar o aluguel e financiar uma cirurgia que pode restaurar sua visão, o Vagabundo se envolve em diversas tentativas de conseguir dinheiro – desde pequenos trabalhos até encontros fortuitos com um milionário excêntrico (Harry Myers), que só o reconhece como amigo quando está bêbado. A história se desenrola entre momentos de ternura e crítica social, culminando em um desfecho emocionante, quando a Florista recupera a visão e finalmente enxerga quem é, de fato, seu benfeitor.
A Florista, outro personagem-tipo, representa um trabalhador que está cego em relação à sua condição social. Nesse contexto, a cegueira da personagem não é apenas física, mas metafórica. Ela vive uma espécie de sonho de Cinderela, que espera ser resgatada por um príncipe. O filme termina em um momento de ruptura quando ela recupera a visão e reconhece quem ele é de verdade. Chaplin consegue nos apresentar uma cena de pura emoção: “Você consegue ver?” é a última fala que o Vagabundo dirige à Florista, que o reconhece pelo tato, pelo concreto. É também um momento de tomada de consciência incrível.
Outro personagem central é o Milionário bêbado, com quem o Vagabundo estabelece uma relação após salvá-lo de uma tentativa de suicídio. O Milionário o adota como melhor amigo sempre que está bêbado, tornando-se generoso e afável. Mas, quando volta à sobriedade, o reenquadramento social se impõe: o Vagabundo é novamente descartado. A oscilação entre consciência de classe (sobriedade) e alienação (embriaguez) é a chave da relação entre os dois. Chaplin parece que usa aqui um dos principais conceitos do marxismo: a conciliação de classes é impossível. O episódio é assim uma denúncia sobre a falácia da conciliação de classes, algo que a social-democracia tentava vender naquele momento e, infelizmente, ainda tenta. Mas o filme é precioso em deixar claro que qualquer aproximação entre ricos e pobres só é possível quando os donos do capital estão completamente alienados da situação. Sóbrio, o burguês retoma seu lugar e exige que o pobre volte ao dele.
O filme também expõe o trabalho, no capitalismo, como exploração. O Vagabundo tenta se empregar, mas é sempre jogado em situações humilhantes ou absurdas. O trabalho, neste caso, não é dignidade, é comédia cruel. E o pouco dinheiro que ele consegue só é obtido por acaso. Para ajudar a Florista com o aluguel, ele consegue arrumar um emprego como gari, que ele obviamente não suporta. Sem seguir as regras de horário impostas pelo patrão, é demitido. Em um outro momento, tenta conseguir dinheiro como boxeador, colocando-se no ringue para ganhar alguma coisa das apostas. A sequência entrou para a história do cinema. Na verdade, longe do esporte, trata-se da representação de uma atividade que hoje damos o nome de precarização do trabalho.
Com Carlitos, Chaplin nos oferece uma figura pedagógica, lúcida, capaz de transitar entre classes e revelar as engrenagens, disfunções e contradições da sociedade capitalista. Ao final, resta o olhar consciente do Vagabundo e a constatação de que, sem superação das estruturas de classe, não há transformação possível.
Luzes da Cidade é uma representação da decadência de um sistema que, mesmo em ruínas, continua fingindo civilização com estátuas, cerimônias e discursos para salvar “a democracia”. E Chaplin, com seu humor revolucionário, nos lembra que o riso é uma arma, principalmente quando é capaz de revelar a verdade. Imperdível.
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