Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Hollywood, o woke e uma velha política

"Um dos fenômenos mais interessantes a se discutir é o dos filmes bíblicos dos anos 1950"

Uma das discussões mais comuns sobre o cinema é quanto ao seu uso ideológico, o que hoje se tornou marcante por conta da chamada “cultura woke”, quando os filmes, e a produção cultural em geral, assumiram ostensivamente os valores seculares contemporâneos. Entretanto, negligencia-se o quanto isso esteve presente em toda a história do cinema, fazendo parecer que o que existia anteriormente era um cinema “neutro”.

Para demonstrar que nada há de mais fajuto, pode-se recorrer a quaisquer períodos do cinema. A ideologia sempre esteve ali, marcadamente aquela do país dominante, onde se produzia ou de onde se financiava determinada produção. O cinema dos anos da Guerra Fria produziu anos e anos de filmes antirrussos de forma geral, os anos 1990 foram uma celebração à globalização, o fascismo e o nazismo já se utilizaram do cinema, o racismo americano já produziu filmes em nome da Ku Klux Klan etc.

Em sendo isso uma realidade, um dos fenômenos mais interessantes a se discutir é o dos filmes bíblicos dos anos 1950.

O cristão sob ameaça do ateu

O imperador Nero, em “Qvo vadis”. Ameaça aos cristãos, tal qual com Stalin

A Guerra Fria era uma realidade, nos anos 1950 e 1960, como jamais fora após essas décadas. O período de testes das primeiras bombas atômicas, da crise dos mísseis, da ascensão do socialismo em revoluções em Cuba e na China, seria arrefecido a partir dos anos 1970 até o mundo mudar no início dos anos 1990. Portanto, nessa época se encontra o coração do medo ao socialismo e a tudo que ele trazia.

Para além de toda perda de liberdade e socialização forçada da propriedade, questões mais restritas ao social e econômico, algo tocava profundamente o cidadão comum: o pânico social, mesmo em países distantes do comunismo, em relação ao ateísmo representado pelo materialismo histórico marxista. Este que, embora não fosse realmente o que houvesse nas sociedades comunistas, haja vista que a atual Rússia é um país cristão, era um imaginário: todos seriam ateizados numa ditadura totalitária comunista.

Por isso, hollywood daquela época mais que investiu em filmes bíblicos. Bastiões do cinema como “Os dez mandamentos” (1956), “Quo vadis” (1951), “O manto sagrado” (1953) e o mais que consagrado “Ben-Hur” (1959) nada mais foram que uma miscelânea de histórias da bíblia, ou relacionadas a ela. O roteiro, numa hollywood que vinha de histórias complexas como as dos anos 1940, mais destacadamente “Casablanca” (1941), os filmes do Chaplin, caiu na reprodução simplificada de histórias religiosas.

A ferramenta era um instrumento claro da propaganda norte-americana, num momento em que, encerrada a Segunda Guerra Mundial, não se sabia se a terceira não poderia vir da União Soviética, tampouco se uma revolução não poderia eclodir dentro de qualquer país, com o apoio do Estado socialista. Portanto, o fator unificador era o cristianismo, ele mesmo que, agora, fervorosamente se coloca como opositor da cultura “woke”.

Arte e política caminham (e se perdem) juntas

Em “Ben-Hur”, o sacrifício cristão é vivido pelo protagonista e identificado com o público

O cinema com carga ideológica é algo quase pleonástico. Durante mais de cem anos, vai e vem com períodos de maior conformação de pensamento em relação ao sistema que o controla, ou maior liberdade criativa. Os anos 1970, 80, 90 e 2000s produziriam grandes obras autoriais, desde Tubarão (1975), de Steven Spielberg, até Borat (2006), de Sasha Baron Cohen. O que existe atualmente é uma resposta a um mundo em crise: quando o capitalismo não entrega ganhos sociais reais, recorre à venda de bens simbólicos.

Exatamente o fator dos anos 1950. Ante a ascensão da China, do multilateralismo e a consequente dificuldade ocidental em gerar prosperidade, já que o capital não opera exclusivamente em função das potências ocidentais e a distribuição do bolo se torna mais desigual na base, é preciso entregar algum medo ou ganho à classe trabalhadora. O ganho, antes a liberdade individual, é o ganho simbólico da sociedade de direitos. O medo, que antes era o ateísmo, é a incivilidade democrática e para com as minorias, creditada aos países emergentes.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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