Uma menina de oito anos, incentivada por um desafio nas redes sociais, morreu após inalar desodorante aerossol. Ela foi encontrada por seu avô, já desacordada, ao lado de uma almofada embebida no produto e do telefone celular. Estamos todos sensibilizados com a morte da criança, mas a primeira-dama, Janja da Silva, foi além. Aproveitou-se do trágico episódio para pedir celeridade na votação do projeto de regulação das redes sociais. Ao atribuir a grandes empresas privadas, as big techs, a tarefa de censores de conteúdo, a sociedade estaria protegendo suas crianças. Essa é uma das principais estratégias de venda dessa ideia à população.
Como é típico de vendedores, a senhora Janja oculta os defeitos do produto e faz parecer que ele é uma espécie de panaceia. Na prática, as plataformas de internet seriam responsabilizadas por todo o conteúdo publicado por milhões de usuários 24 horas por dia sem necessidade de condenação por tribunal de Justiça. Bastaria uma denúncia de qualquer pessoa a qualquer tempo para acionar o mecanismo de retirada da informação. Não é difícil perceber que isso seria tecnicamente inviável, o que nos leva ao real intuito do projeto: estabelecer a censura prévia de tudo o que é divulgado nas redes sociais. Por precaução, para não serem responsabilizadas por “desinformação”, “discurso de ódio” ou “desafio do desodorante”, as plataformas estabeleceriam um rigoroso crivo para eventuais publicações.
É compreensível que as plataformas sejam contrárias a um projeto como esse, pois as redes sociais, transformadas em conventos ou colégios internos, perdem sua razão de ser e, na lógica do sistema capitalista, deixam de ser um bom negócio. Esse fato, no entanto, não nos coloca em oposição às big techs, como pensam nossos amigos da esquerda pequeno-burguesa, que se apressam em condenar as empresas, ávidas por lucrar com o ódio que os seres humanos nutrem por seus semelhantes. Essa visão, além de simplista, é especialmente arrogante: quem seriam, afinal, os educadores da humanidade, que fariam a gestão da “censura do bem”?
Temos convivido com a sanha canceladora dos identitários, sedentos de punir “os maus”. A lei da injúria racial – e a da injúria homo e transfóbica, instituída diretamente pelo STF “por analogia” – abriu um perigoso precedente. Aprovada para beneficiar a população negra (mais especificamente a de classe média), é hoje usada para condenar discurso político em defesa da Palestina nas redes sociais. Segundo a Conib (Confederação Israelita do Brasil), “o antissionismo é a nova face do antissemitismo” – e tome perseguição política sustentada pela lei da “injúria racial”. Precisamos de ainda mais censura?
As plataformas, é bom lembrar, na condição de empresas privadas, já são livres para censurar o que bem entenderem segundo seus regulamentos e também por meio do uso de algoritmos. Se vierem a ser responsabilizadas, como defende o projeto em análise, qualquer brecha que ainda exista será fechada. Programas de política serão descontinuados “por precaução”. Voltaremos à “segurança” da informação veiculada pela imprensa burguesa.
Infelizmente, a regulação das redes sociais não vai proteger nossas crianças, como espera Janja da Silva. São muitos os casos, com maior ou menor repercussão, de pequenos que perdem a vida em acidentes: a criança que entra na piscina sozinha atrás de um brinquedo, a criança que corre na frente de um carro atrás de uma bola, a criança que despenca da montanha-russa. Cada caso tem sua dor e seus responsáveis. Ninguém cimenta a piscina do edifício nem condena o fabricante do automóvel – nem mesmo o parque de diversões é fechado por causa de acidente com morte.
Crianças precisam de supervisão. No próprio frasco dos desodorantes há advertências: “Evite a inalação deste produto. Proteger os olhos durante a aplicação. Perigo: aerossol extremamente inflamável. Recipiente sob pressão: risco de explosão sob a ação de calor. Manter ao abrigo da luz solar, não expor ao sol nem a temperaturas superiores a 50 °C. Manter fora do alcance de crianças”.
É lamentável que a primeira-dama, a propósito de manifestar solidariedade para com a família da criança morta, ecoe o discurso sensacionalista da imprensa burguesa, que sonha com a volta do controle total da circulação de informação no país. Aplica-se ao caso aquela imagem um tanto bizarra do banho do bebê, em que se joga fora o próprio bebê junto com a água da banheira. Para supostamente proteger as nossas crianças, abrimos mão da multiplicidade de vozes que ganharam espaço graças ao novo modelo de comunicação da internet.
É um erro crasso o governo do PT achar que tem algo a ganhar com o monopólio da Rede Globo e do seleto grupo de donos de jornais, todos tradutores fiéis dos interesses imperialistas, sobre a informação. Nem o coelho da Páscoa acredita que coibir o “discurso de ódio” e a “desinformação” seja um modo de lutar contra o “fascismo”. A burguesia sabe muito bem o que quer – e não é o PT.