Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Cortázar, Rayuela e o labirinto da leitura

"Nesse meio tempo, o escritor nos oferece duas linhas de leitura: uma, com início meio e fim, contando diretamente a história"

Não existem, segundo a linha que seguimos neste site, livros difíceis. Contudo, se o leitor busca um título que lhe seja desafiador, um dos mais indicados seria: “Rayuela”, romance do argentino Júlio Cortazar, publicado em 1963 em espanhol. No Brasil, está traduzido e publicado pela Companhia das Letras, desde 2019, como “O jogo da amarelinha”, um título que, embora perca a belíssima sonoridade do original, mantém seu significado “literalmente figurado”.

Isso porque, neste livro, o que contam são os caminhos da história que o leitor escolhe percorrer. Esse truque influenciou muitos livros para crianças, como aquilo de “agora que chegou aqui, escolha a página tal se quer que o herói lute contra o inimigo, ou a página tal se quer que ele fuja com a donzela”. Pois bem, isso foi iniciado em Cortázar, só que de forma mais elaborada, densa e angustiante.

Cursos e percursos (sem spoilers)

Na história, começamos acompanhando a história de amor entre Horácio, um bom-vivant argentino em Paris, relativamente abastado, que vive a promover festas e trocar experiências culturais com amigos também imigrantes ou franceses, e Lúcia, uma jovem uruguaia quase simplória com um filhinho chamado Roncamadour, que imigrou à França para ter uma vida melhor. Ela é chamada por todos de “La Maga” e se encanta pela cultura de Horácio, sonha em ser atriz e vive entre baixos serviços, num quarto e sala alugado, cuidando do menino.

Um dos capítulos, inclusive, um dos textos mais lindos do livro, que tem vida independente dentro dele, é uma declaração de amor Lúcia para Roncamadour, por meio de uma carta, em que expressa o quão confusa e amorosa ela é. É fácil encontrar no YouTube trechos do próprio Cortázar declamando a prosa de Lúcia, terminando em lindos apelidos criados pela mãe para seu filho, como “dente de alhozinho, eu te amo tanto, nariz de açúcar, arvorezinha, cavalinho de pau…”.

Nesse meio tempo, o escritor nos oferece duas linhas de leitura: uma, com início meio e fim, contando diretamente a história. A outra, com textos avulsos anexos à obra principal, numerados, os quais se acessa olhando o número que tem no fim de cada capítulo, que indica a numeração do texto que se deve acessar no apêndice. Ele é imenso, quase do tamanho da própria linha narrativa principal, embora os textos necessariamente não tenham conexão com a história, por vezes fora da cronologia, por vezes alheios ao conteúdo, mas terão sua importância diante da complicação e do clímax da obra.

Tragédia e loucura (com spoilers)

O trecho de La Maga falando com o bebê é a antessala da tragédia que marca a história. Levada pelo amor por Horácio e pela boemia que o acompanha, Lúcia sucumbe à sua pobreza e à pouca estrutura para cuidar de seu bebê. Com poucos recursos, ainda assim aceita acompanhar os amigos em festas da boemia, deixando Roncamadour de lado, imaginando seu futuro como atriz e seu amor seguro com o argentino abastado.

Numa noite de festa em sua própria casa, Roncamadour está muito doente e febril, e Lúcia está cuidando dele com remédios baratos e ruins. Entre idas e vindas da festa na sala ao bebê doente no quarto, em algum momento descobre que o bebê morreu. A perda do filho é tão arrasadora para a mulher que ela deixa o apartamento correndo, um tanto enlouquecida, e é a última vez em que aparece na história.

Daí vem o nome do livro, “O jogo da amarelinha”, equivalente a “Rayuela” em espanhol. A segunda parte da história é destinada às lembranças de Horácio, já marcadas na primeira frase de todo o livro, mas compreensível só agora: “Encontraria La Maga?”. A segunda parte apenas nos conduz à loucura que se instala no próprio Horácio, de volta à Argentina, em que é cuidado por um casal e não tem cabeça para outra coisa a não ser recuperar sua amante desaparecida.

Toda a busca se dá em sua mente, mas são só delírios. E o que podemos acessar, se quisermos pistas de “onde está a Maga”, são os números de fim de páginas que nos conduzem aos apêndices, e eles próprios a outros apêndices, de modo que estamos presos àquele conjunto de caminhos dentro do livro, tentando entender como terminou a moça que perdeu o filho. Suicidou-se numa ponte de Paris? Foi viver de sua arte, agora livre da obrigação de criar um filho, o que já lhe parecia um peso? Voltou ao Uruguai para refazer a vida, deprimida e conformada? Não se sabe, nem saberemos.

Idas e vindas: a amarelinha

Leitores e mais leitores, muitos deles acadêmicos, tentam definir os rumos da história com base na leitura dos apêndices, jamais tendo sido encontrada uma solução, tal qual um sistema matemático complexo em que o autor de uma resposta leva a Medalha Fields, o Nobel da área. Ler “Rayuela” requer distanciamento do leitor, ou, caso ele caia de cabeça emocionalmente na história, ficará preso no labirinto de possibilidades deixadas por Cortázar, sendo que ele próprio jamais apontou a sua solução para o drama de La Maga e Horácio.

Machado de Assis, de quem Cortázar toma grande influência para seu realismo mágico, foi mais generoso com seus leitores, ao legar honestamente o seu mistério insolucionável: “Capitu trau ou não Bentinho”. O autor argentino, por sua vez, nos prendeu em um labirinto, ou um jogo de amarelinha, em que uma suposta resposta está dentro de seus meandros, mas jamais será encontrada.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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