Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Casamento de Luxo, de Charles Chaplin, e a mulher nos anos 1920

Chaplin evidencia os limites da emancipação feminina dentro da sociedade capitalista

Lançado em 1923, Casamento de Luxo (A Woman of Paris) é uma obra pouco conhecida de Charles Chaplin. Famoso por suas comédias protagonizadas pelo icônico Carlitos, Chaplin surpreendeu ao dirigir um drama sem sua presença em cena, abordando a condição da mulher no capitalismo pré-Crise de 1929. Sem esquecer a luta de classes, o filme se destaca por um enredo complexo, recheado de tipos sociais, com um certo didatismo que busca fazer o público refletir sobre o que é mostrado, sem cair em falsos moralismos.

Diferente dos filmes que consolidaram sua carreira, Chaplin escolheu contar uma história baseada nos dilemas de uma mulher dividida entre o apelo luxuoso de seu amante burguês e a fragilidade moral de seu namorado pequeno-burguês. A abordagem moral não foi bem recebida pelo público na época, já que muitos esperavam mais uma comédia. No entanto, a crítica elogiou a maturidade do filme e seu impacto na evolução do cinema narrativo. Com o tempo, Casamento de Luxo – um título infeliz em português – passou a ser visto como um marco na cinematografia chapliniana, influenciando diretores como Ernst Lubitsch e Lubomir Vyplelka na construção do enredo social moderno.

A trama acompanha Marie St. Clair (Edna Purviance), uma jovem que planeja fugir para Paris com seu namorado, Jean Millet (Carl Miller). Ela vive com seu padrasto em uma região do interior da França, e tudo indica que a relação é abusiva, já que ele é um homem repressor e violento.

Um acontecimento inesperado e um mal-entendido – recursos que Chaplin utiliza com maestria ao longo de todo o filme – levam Marie a partir sozinha. Um ano depois, ela está inserida na alta sociedade parisiense, como amante do burguês cínico Pierre Revel (Adolphe Menjou). Quando reencontra Jean – em mais um evento fortuito – Marie se vê diante de uma difícil escolha: seguir sua paixão verdadeira ou permanecer no conforto e segurança proporcionados por Pierre. O desfecho trágico rompe com a expectativa de uma redenção romântica, tornando o filme ainda mais impactante.

Chaplin explora, na personagem de Marie St. Clair, a figura da flapper, a jovem independente e moderna da década de 1920. Com cabelos curtos, figurino da moda e uma postura desafiadora perante as normas sociais, ela encarna o espírito da modernidade proporcionado pelos anos entre as guerras.

A jornada de Marie para Paris já representa uma ruptura com a cultura provinciana e religiosa na qual foi criada. O tema do filme discute a condição feminina na época, com o olhar privilegiado de quem presenciava as transformações sociais de perto. A personagem interpretada por Edna Purviance apresenta contradições que a tornam profundamente interessante.

Seu dilema moral também é um dilema social: como garantir sua liberdade e independência sem estar presa, de um lado, ao cinismo conveniente do dinheiro fácil ou, de outro, às convenções conservadoras, religiosas e limitantes da classe social de seu namorado?

Além disso, com seu filme, Chaplin representa o fenômeno flapper, incluindo também as amigas de Marie, como uma manifestação social superficial. Algumas análises apontam as flappers como as primeiras mulheres a ingressar plenamente na sociedade de consumo como conhecemos hoje, à medida que as primeiras lojas de departamento surgiam naquela época. Elas seriam as celebridades, as influencers de hoje. O ponto de vista do filme e de seu autor nos ajudam a entender como funcionava esse movimento no contexto histórico complexo da época..

De certa forma, Chaplin evidencia os limites da emancipação feminina dentro da sociedade capitalista, que lhe oferece apenas duas opções restritivas. No final, Marie encontra um terceiro caminho. Sua cena final é marcante: ela e um de seus filhos adotivos sobem de carona na carroça de um camponês, simbolizando sua escolha de classe e sua independência.

O filme foi concebido como uma forma de consolidar Edna Purviance como uma estrela dramática. Parceira de Chaplin em mais de 30 filmes, ela era conhecida por sua doçura e sutileza na atuação, qualidades que equilibravam a comédia física de seu diretor e mentor. Em A Woman of Paris, Purviance entrega uma interpretação madura e sofisticada. Infelizmente, o fracasso comercial do filme prejudicou sua carreira, e ela acabou abandonando o cinema poucos anos depois. Mesmo assim, sua atuação permanece como um dos grandes destaques da obra.

A recepção morna de A Woman of Paris fez com que Chaplin retirasse o filme de circulação por muitos anos. Foi apenas nas décadas seguintes que ele começou a ser reavaliado e reconhecido por seu enredo e abordagem social. A direção precisa, as atuações mais naturais e o uso inovador da mise-en-scène fizeram do filme uma influência para o cinema posterior. Hoje, ele é considerado um dos trabalhos mais intrigantes e ousados de Chaplin, provando que sua genialidade ia muito além do humor.

A Woman of Paris é um filme que merece ser redescoberto. Para os admiradores de Chaplin, ele representa um lado menos explorado de sua genialidade; para os amantes do cinema, é um retrato fascinante da conjuntura social do período entre as guerras. Hoje, firma-se como uma obra essencial para quem deseja entender a evolução do próprio cinema.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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