Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Capote e o Sangue Frio da Reportagem

"O que Capote fez foi dar a esse episódio uma dimensão inédita: transformou a reportagem em uma narrativa literária"

Quando A Sangue Frio foi publicado em 1966, Truman Capote alterou de maneira definitiva a forma como o jornalismo narrativo poderia ser concebido. A história do assassinato brutal da família Clutter, em Holcomb, Kansas, em 1959, já era suficientemente impactante para gerar repercussão. O que Capote fez foi dar a esse episódio uma dimensão inédita: transformou a reportagem em uma narrativa literária, com atenção a detalhes, ritmo narrativo e construção de atmosfera dignos de um romance. Ao lado de Harper Lee, que o ajudou na pesquisa, Capote entrevistou moradores, policiais e conhecidos da família assassinada, além dos próprios autores do crime, Perry Smith e Richard Hickock.

O resultado foi um livro que se afasta da frieza dos registros jornalísticos da época. Capote reconstitui não apenas o que aconteceu na noite do crime, mas também o contexto social de uma comunidade isolada do interior norte-americano, os medos latentes, as rotinas de uma família exemplar e a sombra que pairava antes do desastre. Essa reconstrução, minuciosa e literária, abriu caminho para o que viria a ser chamado de new journalism, uma vertente em que a reportagem adota recursos narrativos de ficção sem abandonar a investigação factual. Revistas como The New Yorker e, mais recentemente, a Piauí, continuam a trabalhar sob essa inspiração, explorando personagens, diálogos e atmosferas de maneira literária, sem que isso seja visto como uma traição à verdade.

A questão da proximidade e o risco da distorção

Um dos pontos mais debatidos sobre A Sangue Frio é a relação de Capote com Perry Smith, um dos assassinos. Há registros de que o escritor teria desenvolvido um vínculo emocional com ele, algo que levanta questões sobre parcialidade e a escolha de focar tanto em sua trajetória pessoal. Capote deu a Smith uma profundidade psicológica rara em narrativas jornalísticas, explorando suas dores de infância, seus sonhos frustrados e seu temperamento dividido entre violência e sensibilidade. Em contraste, a família Clutter, vítimas do crime, aparece como uma representação da normalidade e da inocência, mas sem a mesma densidade literária.

Esse desequilíbrio levou muitos críticos a apontarem que o livro, ao humanizar em excesso um dos criminosos, pode ter gerado uma distorção narrativa. Teria Capote sido justo? Ou teria se deixado levar por sua empatia e fascínio pessoal? É impossível responder com clareza. O certo é que a escolha estética de dar voz ao assassino tornou o livro ainda mais impactante, justamente porque rompe com a narrativa tradicional, em que o criminoso é reduzido a uma função dentro da trama. Ao dar-lhe protagonismo, Capote mexeu com os limites da objetividade jornalística e com o modo como leitores se relacionam com o mal.

A repercussão e a permanência

O impacto de A Sangue Frio não se limitou ao campo literário. No jornalismo, mostrou que era possível contar histórias reais com a sofisticação de uma obra literária. No cinema, sua influência se estendeu por décadas, mas foi com o filme Capote (2005) que a dimensão pessoal do escritor diante da obra ganhou sua melhor tradução. Dirigido por Bennett Miller e estrelado por Philip Seymour Hoffman, o longa mostra o processo de apuração, o envolvimento do autor com Perry Smith e o dilema ético de quem precisa esperar a execução de um condenado para concluir seu livro. Hoffman entrega uma interpretação de enorme complexidade, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator em 2006.

O filme reforça a ambiguidade de Capote: ao mesmo tempo em que cria uma obra-prima que expande os horizontes do jornalismo, também expõe as tensões entre verdade e ficção, ética e exploração, proximidade e distanciamento. Essa dualidade é parte do que mantém o livro vivo até hoje. A Sangue Frio não é apenas um registro de um crime; é um marco de como a literatura pode atravessar o campo da reportagem, moldando novas linguagens para contar a realidade.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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