Após as eleições em Sri LankaO Sri Lanka é um país cheio de contradições e a trajetória do maior partido de esquerda, que se reclama marxista-leninista, é uma destas contradições. O JVP era inicialmente uma pequena organização que tentava influir na politica dominante. Quem dominava era o SLFP (Partido da Liberdade do Sri Lanka) que nessa época representava o nacionalismo budista cingalês. Em termos de política econômica, quando esteve no governo, o partido estava buscando programas que expandiam o domínio do Estado nas atividades econômicas do país. O governo nacionalizou bancos e plantações, além de expropriar todas as empresas petrolíferas de propriedade estrangeira. O JVP fez campanha aberta pelo governo de coalizão de esquerda da Frente Unida liderada pelo SLFP. Após sua desilusão com a coalizão, eles começaram uma insurreição contra o governo do Ceilão no início de 1971, que se intensificou após a proibição do partido. A ala militar do JVP, a Guarda Vermelha, capturou mais de 76 redutos policiais em toda a ilha do Ceilão.
Foi Chandrika Kumaratunga quem transformou a orientação do SLFP quando chegou ao poder em 1994. Ela fez com o SLFP o que Bill Clinton e Tony Blair fizeram pelo Partido Democrata nos EUA e pelo Partido Trabalhista no Reino Unido, respectivamente. Sob Kumaratunga, a administração da Aliança do Povo, liderada pelo SLFP, avançou com muita ousadia com a privatização de várias empresas estatais na continuação das políticas econômicas favoráveis ao mercado introduzidas por seus antecessores. Ela também estava defendendo o federalismo como uma solução para as queixas da comunidade tâmil, sinalizando um afastamento de o legado majoritário do SLFP.
O JVP disputou eleições presidenciais pela primeira vez em 1977, quando o presidente J. R. Jayewardene libertou a líder do JVP, Rohana Wijeweera, da prisão. Wijeweera disputou as eleições presidenciais de 1982 e foi o terceiro candidato mais bem-sucedido, conquistando 4,16% dos votos expressos.. O JVP lançou uma insurreição mais organizada pela segunda vez em 1987, após a assinatura do Acordo Indo-Sri Lanka.
O governo lançou a Operação Combine, que foi uma força-tarefa implantada pelo Exército do Sri Lanka de 4 de agosto de 1989 a fevereiro de 1990 para conduzir operações de contrainsurgência contra a insurreição comandada pelo Janatha Vimukthi Peramuna (JVP), que lançou sua segunda insurgência em 1987. A operação destruiu grande parte do partido e assassinou a líder Wijeweera. O JVP voltou às eleições como Frente de Salvação Nacional. Os membros sobreviventes do JVP fizeram campanha nas eleições de 1994, mas acabaram se retirando e apoiando o nacionalista Partido da Liberdade do Sri Lanka, o principal partido de oposição na época. Em 2004, juntou-se ao governo como parte da Aliança pela Liberdade do Povo Unido e apoiou o governo em sua guerra contra os Tigres de Libertação do Tamil Eelam (LTTE), mas posteriormente deixou o governo de coalizão.
Desde 2019, o JVP disputa eleições sob sua própria coalizão nacional, o Poder Popular Nacional (NPP) e desde então tem sido um partido proeminente na política do Sri Lanka.
Em 2019, sob a liderança de Dissanayake, o NPP foi formado como uma aliança socialista com várias outras organizações. Enquanto o JVP continua a seguir os princípios marxistas, o NPP adotou uma plataforma social-democrata de centro-esquerda – com o objetivo de atrair um apoio público mais amplo. Apesar desses esforços, Dissanayake obteve apenas 3% dos votos nas eleições presidenciais de 2019.
Em 2022 a revolução tão arduamente procurada pelo JVP finalmente aconteceu, Após 50 dias de mobilizações de massas e várias greves gerais, a insurreição da juventude, da classe trabalhadora e do campesinato pobre derrubou o odiado governo da corrupta família Rajapaksa. Nem a selvagem repressão militar e policial, que deixou dezenas de mortos e centenas de feridos, nem os ataques de grupos fascistas organizados pelo Estado conseguiram travar o movimento de massas. Após décadas de corrupção e parasitismo da burguesia, da exploração violenta das multinacionais, dos bancos e dos fundos de investimento imperialistas que levaram o país à falência, a violência revolucionária foi tão forte que Gotabaya Rajapaksa e o seu irmão Mahinda, o primeiro-ministro, tiveram de fugir do país. As imagens das massas invadindo e tomando o palácio governamental ficaram para sempre na lembrança dos acontecimentos.
Desta vez, no entanto, a inexistência de uma vanguarda revolucionária dotada de um programa socialista e de um plano de ação da esquerda e dos sindicatos não permitiu que os trabalhadores de tomassem o poder. O JVP e o NPP participaram das mobilizações mas não foram capazes de dirigi-las. E isso permitiu que a classe dominante recuperasse esforços para aplicar a mesma estratégia que noutros países: mudar os integrantes do governo para fingir alguma mudança.
A família Rajapaksa foi substituída sem eleições por Ranil Wickremesinghe, um veterano político burguês historicamente ligado ao imperialismo norte-americano, pertencente a outra das famílias burguesas que dominam o país desde a independência em 1949: ele já tinha sido primeiro-ministro cinco vezes. As eleições de 21 de setembro de 2024 destinavam-se a legitimar esta mudança de fachada e a estabilizar o país. Mas o resultado foi exatamente o oposto.
O voto popular arromba a porta da burguesia
Os candidatos diretamente ligados aos grandes partidos burgueses que governaram o país há décadas foram varridos do mapa. O candidato a presidente Wickremesinghe, apesar de contar com a máquina governamental e o apoio inicial de setores decisivos da classe dominante e do imperialismo, não conseguiu obter mais de 17% dos votos, ficando em terceiro lugar. Namal Rajapaksa, representante do clã expulso do governo pela insurreição popular, obteve uns patéticos 2,5%.
O voto popular consagrou como novo presidente Anura Kumara Dissanayake, líder do JVP, o partido que 40 anos depois das insurreições guerrilheiras chegou finalmente ao poder. Liderando a coligação de esquerda, National People’s Power (NPP), Dissanayake obteve 5.740.179 votos no segundo turno, 55,89%, derrotando Sajith Premadasa, um político burguês que liderou a oposição parlamentar a Rajapaksa de 2019 a 2022, e que obteve 4.530.902, 44,11%.
Premadasa , o candidato derrotado, liderou uma frente ampla que assumiu uma imagem “progressista” e “crítica”, ao poder tradicional, reunindo uma série de partidos em torno do seu partido, fruto de um racha de um dos partidos burgueses tradicionais desacreditados, sociais-democratas, representantes das minorias tamil e muçulmana, e até alguns sindicatos.
Os milhões de jovens, trabalhadores e camponeses (pelo menos no sul, no centro e no oeste do país, onde predomina a etnia cingalesa) viram em Dissanayake o único candidato capaz de derrotar os partidos da classe dominante.
Esmagada pelo peso de uma dívida que atingiu $49,80 bilhões de dólares, a economia do Sri Lanka caiu 12% em 2022, – 2,3% em 2013, tendo recuperado o crescimento em 2024: no terceiro trimestre de 2024, a taxa de crescimento foi de 5,5%. Mas a situação econômica do Sri Lanka é estruturalmente desequilibrada, apresentando déficit na balança comercial de 554 milhões de dólares em novembro de 2024, déficit em transações correntes de 2% do PIB em dezembro de 2023, 384, 25 milhões de dólares de investimento estrangeiro direto em setembro de 2024 e remessas internacionais de 587,70 milhões de dólares em novembro de 2024. O país tem uma indústria têxtil cujo produto é quase totalmente exportado, sendo a produção baseada em baixíssimos salários, o que provoca greves regularmente no setor. A dívida externa está atualmente em 55,37 bilhões de dólares.
Os dados sobre a situação social do país são muito ruins. No final de 2023, de acordo com o Banco Mundial, 25,9% da população — entre cinco e seis milhões de pessoas — vivia abaixo do limiar da pobreza. O Sri Lanka ocupa o segundo lugar no mundo em matéria de subnutrição infantil, com 410.000 crianças subnutridas. Desde 2019, de acordo com um estudo de LIRNEasia, quase metade da população alterou os seus hábitos de consumo, cortando nos alimentos para satisfazer outras necessidades. Mais de 50% não têm poupanças e 6% dos agregados familiares deixaram de enviar os seus filhos para a escola.
Em 2023, a entrada de capitais, nomeadamente da China, o primeiro país a conceder empréstimos e a anunciar investimentos após o incumprimento temporário da dívida externa decretado pelo governo do Sri Lanka, impediu o colapso total.
As contradições do JVP e a questão Tamil
A primeira ação de Dissanayake como presidente foi dissolver o parlamento, dominado por partidos de direita, e convocar eleições legislativas em busca de uma maioria parlamentar. O partido do presidente se apresenta como marxista-leninista mas essa corrente stalinista internacional, que tem alguns adeptos no Brasil, há muito deixou de ter um programa revolucionário para enfrentar o imperialismo e as classes burguesas locais. O presidente e seu partido fizeram a campanha eleitoral estilo lava jatista, limitando-se a prometer a luta contra a corrupção e a pobreza, mas mantendo-se fiel à renegociação do acordo do anterior governo com o FMI, o que significa manter a mesma política econômica, sem melhorias significativas para as classes trabalhadoras.
As imagens de manifestantes a celebrar a sua vitória com bandeiras vermelhas e retratos de Marx e Lenine são puro marketing, não tem conteúdo real. O programa e a trajetória histórica de Dissanayake e do seu partido não refletem as ideias do socialismo científico. O JVP renunciou à política e aos métodos comunistas há décadas. Não põe em causa a propriedade dos grandes capitalistas e latifundiários, nem mesmo o pagamento da dívida aos grandes bancos. A sua tática nas últimas décadas tem sido a de procurar pactos com diferentes setores da burguesia. Em 2004-2005, Dissanayake foi ministro da Agricultura em um governo capitalista. Durante a insurreição de 2022, ele e o seu partido não tiveram qualquer papel e, após a sua vitória eleitoral, propõe alianças com os partidos burgueses para um grande acordo nacional.
As eleições parlamentares
As eleições parlamentares do Sri Lanka realizadas em 14 de novembro de 2024 trouxeram novamente resultados favoráveis ao novo presidente eleito. O partido de Janatha Vimukthi Peramuna (Frente de Libertação do Povo, JVP) – parte da coalizão do Poder Popular Nacional (Jathika Jana Balawegaya, NPP) – ganhou uma maioria absoluta no parlamento de 225 assentos do país.
O NPP – formado por sindicatos, mulheres, estudantes e outras organizações da sociedade civil – derrotou anteriormente os partidos burgueses conservadores estabelecidos nas eleições presidenciais de 21 de setembro.
Nas eleições, o NPP obteve 62% dos votos, com a oposição Samagi Jana Balawegaya (United Peoples Power, SJB) ganhando 18%. Ganhar 159 assentos foi uma vitória esmagadora para o NPP, que tinha apenas três assentos no parlamento anterior. O SJB, que ganhou 40 assentos, é uma dissidência do Partido Nacional Unido (UNP), um partido burguês chave desde a independência em 1948.
Os outros principais partidos a ganhar assentos parlamentares foram o Ilankai Thamil Arasu Katchchi (ITAK), um partido tâmil principalmente no norte e leste, com sete assentos e a Frente Democrática Nacional (NDF), com três assentos.
A NDF é um remanescente da UNP, que defendeu a economia de mercado em 1977. Foi liderado pelo ex-presidente Ranil Wickremesinghe, e seus três candidatos bem-sucedidos se juntaram ao partido pouco antes das eleições.
O “partido Rajapaksa”, Sri Lanka Podujana Peramuna (Frente Popular do Sri Lanka, SLPP), que dominou o parlamento de 2004 a 2015 e novamente de 2019 a 24, alcançou apenas 3% dos votos, conquistando três assentos eleitos e um assento na lista nacional.
Os partidos tâmil e muçulmano ganharam cerca de 6% dos votos.
O NPP ganhou quase 7 milhões dos 11 milhões de votos expressos. A participação eleitoral foi de cerca de 69%, menos do que a participação de 75% nas eleições presidenciais de setembro. Cerca de 5,3 milhões de eleitores registrados não votaram. Reconhecendo o apoio popular ao NPP, menos de 1000 candidatos fizeram campanha ativamente de cerca de 8000 concorrendo às eleições. Não houve grandes comícios realizados pelos partidos burgueses dominantes, nem grandes campanhas publicitárias, incluindo cartazes, faixas e recortes.
A vitória do NPP reflete uma mudança na consciência política dos eleitores, que rejeitaram o conservadorismo da política eleitoral dos partidos estabelecidos, entrincheirados no clientelismo e promovendo o interesse do capital.
Um outro partido de esquerda também participou das eleições, Partido Socialista da Linha de Frente (FSP). O FSP se separou do JVP em 2012, mais voltado para desafiar o etnonacionalismo cingalês-budista que continua a marginalizar as comunidades tâmeis e muçulmanas no norte e no leste, bem como a comunidade tâmil de Hill Country. O FSP disputou as eleições parlamentares sob a Aliança de Luta Popular (PSA), liderada por ativistas progressistas envolvidos com o levante popular de 2022.
O PSA foi criado em junho e inclui o FSP, dois partidos socialistas menores e uma série de outros ativistas. Dois líderes importantes do PSA – Nuwan Bopage e Swasthika Arulingam – são advogados ativistas engajados em questões de justiça social. De acordo com o site do PSA, a aliança visa “transformar os atuais sistemas sociopolíticos e econômicos do Sri Lanka construindo uma sociedade socialista” e “abordar os problemas que afetam a maioria da população, resolver questões nacionais de longo prazo, opor-se a influências externas como o FMI e resistir à interferência estrangeira desnecessária de países como Índia e Estados Unidos”.
O NPP prometeu a devolução das terras mantidas pelos militares nas áreas dàs comunidades locais e a libertação dos presos políticos tâmeis, presos há mais de uma década. Mas, o NPP permanece ambivalente em relação à devolução de poderes para o norte e leste, o que ilustra um compromisso estratégico – por enquanto – com os chauvinistas cingaleses-budistas.
Outra questão em que o NPP se envolveu contra suas promessas anteriores é sua aceitação da agenda do FMI. A agenda visa diretamente aumentar impostos, ampliar a comercialização do Estado e reduzir os gastos públicos com saúde, educação e bem-estar. Enquanto isso, a redução do orçamento militar entra no debate sobre a reestruturação da dívida.
Os setores da burguesia, juntamente com seus aliados internacionais, tentarão mudar o NPP para um projeto autoritário, a fim de manter o “business as usual”. Uma sinalização de que o governo participa deste projeto foi a indicação do chefe da Câmara de Comércio do Ceilão – uma das duas principais associações de empregadores – para Conselheiro Econômico Sênior do presidente.
O novo presidente também nomeou atores-chave de negócios em setores como telecomunicações e comércio varejista, onde a privatização do Estado está na agenda proposta pelo FMI. A privatização de empresas estatais permite que as parcerias público-privadas recém-criadas evitem a responsabilidade pública e a transparência. Enquanto isso, a agenda política de “democracia econômica” do NPP evitou qualquer discussão sobre reformas do mercado de trabalho, com as destinadas a fortalecer as instituições de negociação coletiva e fazer valer o direito dos trabalhadores de formar sindicatos.
Outra questão que o JVPA descuidou foi a da mobilização das mulheres. Menos mulheres foram indicadas como candidatas e apenas uma foi selecionada para a lista nacional do NPP. Embora uma série de sindicatos tenha apoiado o NPP, as tendências autoritárias dentro das frentes sindicais do JVP – e seu movimento estudantil – significaram que o JVP muitas vezes desvalorizou a construção de alianças substantivas com sindicatos progressistas e organizações da sociedade civil.
Esta vitória esmagadora do JVP nas eleições deveria promover a discussão sobre a transformação das economias orientadas pelo mercado para economias voltadas para o público que também abordam as preocupações ecológicas – localmente e com um senso de globalidade. É também um momento para remediar as preocupações com o desemprego, o subemprego e a pobreza, reorganizando os mercados de trabalho e revalorizando o trabalho, incluindo o trabalho de cuidado.
Na verdade , a vitória eleitoral do JVP parece ter acentuado o viés conservador da sua política, inclusive na implementação de uma agenda neoliberal como resultado da politica de acordo com o FMI.
Dissanayake garantiu àqueles que realmente dão as cartas – os capitalistas – que seu programa será responsável, respeitando os acordos feitos com o FMI, talvez alterando este ou aquele dos aspectos mais severos do programa de reestruturação da dívida, mas, de outra forma, garantindo que os credores recebam sua parte. Somente o repúdio da dívida e a expropriação da burguesia local e do capital estrangeiro podem oferecer uma saída para o pesadelo em que o povo foi mergulhado.
O Sri Lanka na luta inter-imperialista
A posição estratégica do Sri Lanka nas rotas marítimas comerciais e militares do Oceano Índico faz com que potências regionais como a Índia e o Paquistão e os blocos imperialistas liderados pelos EUA e pela China tenham interesses no país.
Embora Dissanayake se tenha mostrado disposto a negociar com todos, a sua vitória representa mais um avanço da China, cujo peso econômico e político na ilha continua a aumentar, em detrimento dos EUA, que também veem os seus peões serem afastados do governo.
Tudo indica que os acordos com Pequim serão reforçados. E não apenas porque Dissanayake e o JVP assim o desejam, mas porque, objetivamente, o investimento chinês é o que tem impedido o colapso total do Sri Lanka. Quando o Sri Lanka entrou em falência, os meios de comunicação social estadunidenses e europeus lançaram uma campanha mediática brutal, retratando-o como o primeiro default causado pela pressão chinesa. Na realidade, o gigante asiático detinha 10% da dívida e 81% da dívida acumulada era a bancos e fundos especulativos dos EUA e do Ocidente. De facto, foram estes últimos, através do FMI, que impuseram as condições draconianas que aceleraram o colapso econômico.
O novo Governo do Sri Lanka anunciou em outubro do ano passado a aprovação de um acordo assinado pelo seu antecessor com os credores privados do país para reestruturar uma dívida de 12, 5 bilhões de dólares em obrigações soberanas. A crise de 2022 levou o Sri Lanka a não pagar a sua dívida externa de 46 bilhões de dólares. Em 2023, o país obteve 2, 9 bilhões de dólares empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI), em troca de severas medidas de austeridade e reestruturação da dívida. O acordo acarretou a anulação de 27% da dívida soberana detida pelos credores privados do país e de 11% dos juros devidos pelo Sri Lanka desde que entrou em moratória.
O novo presidente de esquerda do país, Anura Kumara Dissanayake, declarou a sua intenção de “renegociar” certas cláusulas do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), nomeadamente a redução dos impostos sobre os bens essenciais, que são muito impopulares. Mas não disse como faria isso, já que o governo aprovou o acordo.
O que interessa ao imperialismo
China, Índia e Japão estão imersos na nova configuração de suas relações e no controle de suas respectivas áreas de influência, sob o olhar atento e a intervenção dos Estados Unidos, sempre abertos e agressivos. O Sri Lanka está localizado na rota marítima para a ASEAN, por um lado, e para o Estreito de Suez e a África, por outro, e é parceiro da nova Rota da Seda da China, onde o porto de Hambatota é um importante centro logístico.
Pequim está construindo um novo porto em Colombo, embora governos anteriores tenham limitado a colaboração entre os dois países, sem interrompê-la: o governo chinês ajudou Colombo na crise de 2022 ao adiar sua dívida. A Índia, que continua a ser o principal vizinho da ilha, está perdendo influência na ilha, embora esteja construindo depósitos de petróleo em Trincomalee e, em parceria com o Japão, esteja a construir um terminal em Colombo: grandes navios porta-contentores chineses, japoneses e coreanos navegam nas águas de Sri Lanka.
Delhi também tem diferenças com Colombo por causa da minoria tâmil de origem indiana e por causa das drogas: através do istmo Mannar, onde há uma pequena cadeia de recifes e bancos de areia, os traficantes introduzem carregamentos de drogas no Sri Lanka. Muitas das colhedoras de chá são descendentes de tâmeis deportados pelos ingleses para trabalhar nas plantações em condições análogas à escravidão. São mulheres marginalizadas que não possuem terras e, por seus exaustivos dias de trabalho, recebem um salário inferior a um cem euros por mês. Más condições de trabalho prevalecem em todo o país, em campos de arroz e chá e em fábricas têxteis.
A mudança radical de governo do Sri Lanka afeta todo o sul da Ásia. A China está trabalhando intensamente para desenvolver infraestrutura em todo o Sudeste Asiático. A segurança também é uma preocupação: a operação militar Aman Youyi de 2023 foi organizada por cinco países da ASEAN e pela China, e o governo de Pequim está trabalhando para criar um novo acordo de segurança para a região.
A estabilidade da região também é afetada pelo difícil equilíbrio no Mar da China Meridional, onde Washington está brincando com fogo ao alimentar disputas. Neste complexo cenário estratégico, os Estados Unidos tentam há anos transformar o Sri Lanka em um estado cliente e incentivam a privatização de terras e a entrada de multinacionais americanas no país, objetivo que o novo presidente Dissanayake pode colocar em risco.
Em 2019, os Estados Unidos apoiaram um projeto de lei para consolidar todas as terras estaduais do Sri Lanka em um único órgão para facilitar sua subsequente privatização. Washington, cujo objetivo continua a ser atrair o Sri Lanka para a sua aliança com o Japão, a Índia e a Austrália, pretende transformar a ilha num centro logístico para as suas forças armadas, a fim de conter a crescente influência chinesa nos oceanos Índico e Pacífico, e considera que o governo de Sri Lanka está descontente com isso e apoia a posição de Pequim sobre as disputas do Mar da China Meridional. Seu alarme aumentou com o anúncio do novo ministro das Relações Exteriores, o comunista Vijitha Herath, de que o país se candidatará a ingressar no BRICS+ e no Novo Banco de Desenvolvimento liderado por Dilma Rousseff, de Xangai.
Em 2019 os Estados Unidos conseguiram persuadir o governo do Primeiro-ministro Ranil Wickramasinghe a assinatura do acordo com a Millennium Challenge Cooperation, MCC, que afirma fornecer ajuda e assistência para promover o desenvolvimento e as reformas económicas. Antes Washington e Colombo subscreveram o Aquisição e Serviços Cruzados ACSA, (um pacto militar assinado em 2007 que foi renovado em 2017, mantido em segredo e de duração indefinida) que facilitou a intervenção e o controle do Sri Lanka e a introdução de das forças militares dos EUA no país, um acordo que foi duramente criticado pelo JVP de Dissanayake, que promoveu a campanha STOP USA. O embaixador dos EUA, Robert Blake, já comunicou ao seu governo que, com o acordo de 2007, o Sri Lanka “pode desempenhar um papel na um papel significativo na prontidão militar e para como os esforços políticos e militares mudam o foco na Ásia”.
Para alcançar os sempre ambiciosos objetivos imperialistas, os Estados Unidos forçaram o Acordo sobre o Status das Forças (SOFA) (chamado depois o Acordo de Forças Visitantes (VFA), que garante imunidade a militares e funcionários dos EUA que podem circulam armados no Sri Lanka sem restrições, além de entrar e sair do país sem passaporte ou visto. Além disso, o Acordo concede imunidade diplomática a mercenários (“empreiteiros”) que trabalham no Sri Lanka em nome do Pentágono. Toda a área, desde a Mongólia, China, Coréia, Japão e o da Índia à Nova Zelândia, passando por todo o Sudeste Asiático, é monitorada pelo Comando Indo-Pacífico, o USINDOPACOM. O objetivo dos EUA continua sendo transformar o Sri Lanka em uma grande plataforma logística para seus exércitos, limitando assim a influência e a presença chinesa naquele país e na gigantesca região dos oceanos Índico e Pacífico. Dissanayake e seu governo sabem que eles têm uma situação difícil e arriscada diante deles no futuro.
Uma parte da classe dominante do Sri Lanka viu nos investimentos chineses em portos e infra-estruturas uma oportunidade de se beneficiar do boom logístico e quer reforçar essas relações. Conscientes do risco de afastar completamente a Índia, também fecharam alguns acordos com Nova Delhi.
A história do Sri Lanka está repleta de lutas guerrilheiras, greves gerais e insurreições, e estas tradições revolucionárias voltarão a surgir. Novamente Dissanayake e seu partido parecem ter perdido o curso da História. Ele já escolheu apoiar os imperialistas e o FMI.A tentativa de Dissanayake de responder à pressão das massas sem tocar nos bancos, na terra e nos grandes monopólios, e mantendo a sua posição chauvinista sobre a questão tamil, só vai colocá-lo do lado da burguesia e do imperialismo e contra os interesses das classes trabalhadoras.