A sociedade do século XXI, tão propalada quando se fala em avanços e retrocessos, de fato é melhor que as anteriores? Ou o “pleno século XXI” não seria nem melhor nem pior que seus antecessores, apenas diferente sob alguns aspectos e hipócrita sob outros, tendo experimentado intenso progresso material, ajustado alguns problemas passados e desenvolvido outros que não existiam? Essa é a questão que fica latente em duas séries recentes, “Bebê Rena” e “Adolescência”, que se propõem a discutir um dos problemas da realidade, mas terminam por passar recibo de vários dos outros.
A internet como cerne do mal-estar (sem spoilers)
Quando se trata de dilemas da pós-modernidade, ou da época em que “os tempos são outros”, uma das relações conflituosas que mais se apresenta é entre homens e mulheres. Um campo de mútuas acusações de injustiça: um grupo supostamente oprimido até meio século atrás, do qual alguma representação política faz uso e abuso dos problemas do passado, para disputar poder e dinheiro no presente. O outro em movimento de reação, desenfreado porque clandestino e não naturalmente equilibrado pelo debate público. Estabelece-se aí, respectivamente, o feminismo pós-moderno e o masculinismo “red pill”.
Um discurso hegemônico se estabelece: o feminismo, longamente estabelecido politicamente e herdeiro natural dos movimentos legítimos por voto e participação no mercado de trabalho, agregando a defesa da paridade de salários e da proteção contra a violência, incorpora elementos de controle social que vão desde o flerte até as palavras e expresões que se usa, valendo-se da representação institucional para flertar com o autoritarismo. Portanto, lança ao red pill o rótulo de um grupo de misóginos que desejam retroceder os direitos das mulheres e, no limite, legitimar o ódio, a violência e o assassinato. No que estão corretas: todas essas características e riscos estão presentes no discurso red pill, embora críticas ao seu próprio movimento sejam silenciadas. E, imbuídas do monopólio da virtude, rebatem quaisquer formas de oposição com duas acusações: em sendo homens, misoginia; em sendo mulheres, manipulação ou venalidade.
Neste sentido, “Bebê Rena” narra sobre Donny (Richard Gadd), um comediante fracassado que trabalha num bar e, ao oferecer uma bebida para Martha (Jessica Gunning), torna-se alvo de uma perseguição obsessiva que nasce de uma despretensiosa amizade. No entanto, tem de lutar contra o descrédito de ser um homem denunciando a violência de uma mulher. “Adolescência”, por outro lado, narra o drama de um garoto feminicida de 13 anos, Jamie (Owen Cooper), que se torna adoecido pelo ódio fomentado por grupos red pill nas redes sociais.
Em ambos os casos, têm-se a angústia tanto das vítimas perseguidas quanto de seus acossadores, emergindo uma discussão profunda sobre como a nossa sociedade transforma relações interpessoais numa nascente de conflitos que chegam a extremas consequências. Igualmente, a dificuldade da sociedade contemporânea em encontrar o discurso correto de abordagem aos homens, de quem se pede tão somente uma abnegação obrigatória, passível de condenação se reivindicada como virtuosa, a fim de compensar uma desigualdade que já não localizam com clareza no tempo em que vivem.
Sensações de ascensão e de desprestígio (com spoilers)
Briony Ariston, a mulher de prestígio que já não nota o homem simples
Se há dois assujeitamentos que nos definem subjetivamente quase desde o nascimento, determinando o que seremos em nossas vidas, são o geracional e o de gênero. No caso de “Adolescência”, aborda-se os dois, sendo que Jamie, assim como a sua rede de relacionamentos na escola e em casa, constrói seus dilemas de forma invisível para os adultos. As mudanças aceleradas nas tecnologias – que, conforme McLuhan, são extensões do humano – implicam comportamentos e lógicas de organização completamente diferentes. Pais, professores e mesmo policiais não percebem dramas comuns aos adolescentes de hoje: assédio moral nas redes, exposição sexual, discurso de ódio, conspiração de morte.
Ademais da forma inteligente com que trata o tema, tem cenas interessantes como a de um carcereiro que tenta demonstrar seus parcos conhecimentos para impressionar a psicóloga Briony (Erin Doherty). Não reconhecido, desabafa apontando que o cargo dela tem prestígio e realização, ao passo que o seu é uma função deprimente de vigiar as câmeras de uma cadeia. Tanto a tentativa de demonstração de conhecimento quanto o lamento posterior, diante do desprezo da colega, deixam clara a sua fragilidade e o seu não-lugar, enquanto a mulher mantém o comportamento e o ignora permanentemente. Aquele homem de posição social inferior lhe é invisível.
Todo esse drama se desenvolve numa linguagem intimista, em planos-sequência, ou seja, filmagens sem cortes, em que a câmera acompanha diretamente os movimentos da cena e só se avança por diálogos e cenários por meio de transições suaves e ancoradas em cada personagem, o que traz o espectador para as limitações vividas pelos próprios adultos, tentando se entender no ambiente dos jovens. No superestrato, há um ambiente escolar caótico, em que os próprios jovens não se entendem, porque as relações pessoais já existem contaminadas pelas bolhas virtuais, e, em casa, há o silêncio do computador, para onde os adolescentes são atraídos e onde tecem relações alarmantemente conflituosas, passadas despercebidas por todos.
Tal desentendimento emergencialmente perigoso tem no masculino e no feminino uma dramática baliza. Garotas, incentivadas pelo feminismo pós-moderno, entendem que o destrato e a afirmação de superioridade ante os meninos lhes é algo de direito, como medida de compensação por um passado que os adolescentes não viveram. Garotos, em movimento de reação, sentem que o passado lhes pertenceria se ainda existisse, e, atualmente, buscam recuperar elementos retrógrados para orientarem-se num confuso universo em que não entendem seu lugar, até porque o novo espaço do homem na sociedade ainda é, a bem da verdade, indefinido.
O refúgio da mulher assediadora
Donny e Martha, de Bebê Rena
Fato é que dois mal-estares se estabelecem: meninas ainda se veem em desvantagem, dado que residualmente ainda há mais poder entre os homens. Porém, percebem-se em ascensão. Homens ainda têm mais capacidade de se articularem e acessarem estruturas e instrumentos de poder que resultam em constrangimentos sexuais de toda ordem, violência e feminicídio, mas percebem-se em decadência, e poucos estão realmente dispostos a rebaixarem-se socialmente em prol de uma suposta sociedade melhor. O que não é, de imediato, condenável, já que essa sociedade melhor não está garantida e o prestígio social e o conforto financeiro, antes exclusivos do masculino, são dois dos principais motivadores de uma vida feliz. Sempre a ascensão do novo ameaça com a possibilidade da perda, e não é humano esperar que pessoas pragmáticas orientem-se ideologicamente contra o que já lhes favorece.
Porém, “Bebê Rena” já explora outro sentido: as mulheres também podem causar transtornos à vida de um homem, o que ainda é negligenciado. Donny percebe-se numa rede de mentiras e ameaças criadas por Martha, que faz uso do drama feminino da baixa autoestima e desvalorização do corpo divergente, sendo ela acometida por obesidade severa, para intimidá-lo quando tenta reivindicar seu espaço. Nesse ínterim, ainda descobrimos que o protagonista foi alvo de uma sequência de estupros por outro homem, numa mal explicada relação em que ele, mesmo tendo sido dopado e violentado pela primeira vez, visita subsequentemente o estuprador e aceita a mesma droga.
O que importa é que o homem, fragilizado, torna-se igualmente alvo dos problemas que acometem a mulher. É perseguido, é vulnerável a outros homens, é passível de acosso por ameaça a partir das mulheres, que podem se valer da própria legislação de proteção para encurralar seus alvos. Afinal, a presunção de veracidade do depoimento da vítima, aliado ao cataclismo causado por uma denúncia de violência sexual ao acusado, passa a ser uma arma tão poderosa quanto a força física, à disposição de uma mulher sem caráter. Ao denunciar sua perseguidora, por outro lado, o protagonista recebe o descrédito e o deboche dos policiais homens, já que um homem jamais deveria ser frouxo de denunciar por violência uma mulher, o que parece uma contradição nos termos. Fisicamente, sim. Subjetivamente, não.
Falta algo a essa negociação
Não fica claro o que os movimentos sociais, especialmente aqueles de proteção à mulher, argumentam para convencer os homens a deixar a subjetividade dominante. O que o movimento pós-moderno, diferentemente daquele que existiu até os anos 1950, tem por procedimento é desconstruir a posição atual pela destruição. Quem quiser estar ao lado, que esteja, mas também estes serão vigiados até que errem e se tornem alvos de ataque coletivo. Por outro lado, o assujeitamento ao discurso de ódio, organizado entre homens cúmplices na manutenção do status quo, recebe jovens fragilizados com agilidade via internet. Afinal, é mais fácil arregimentar pessoas para a manutenção de tudo como está. Especialmente em se tratando dos homens, que ainda são mais investidos de poder, e são chamados a se organizar para impedir o seu isolamento e desprestígio social.
Dado que o sujeito médio não é convencível pela ideia de que deve abrir mão de si para que, no longo prazo, construa-se uma sociedade melhor, fica clara a necessidade de convencimento pelo econômico e estrutural. A Suécia é constantemente um país citado como modelo em matéria de gênero, mas não é citado, com a frequência necessária, o fato de que o país criou estruturas poderosas de combate à desigualdade, o que apaziguou conflitos internos que jamais adormeceram em nações desenvolvidas como os Estados Unidos e a França. Fica aparente que um fator determinante é se o sujeito tem conforto material e liberdade de empreendimento pessoal e exercício da criatividade, de modo que a ascensão do outro não lhe apareça uma ameaça existencial.
Nesse meio tempo, em vez de entregar uma vida melhor, todos os setores econômicos que encamparam a causa feminista pós-moderna, da Disney aos grandes bancos, da deputada Sâmia Bonfim à presidente do Palmeiras, só conseguem entregar ao homem médio o constrangimento e a garantia do direito a chorar. Literalmente, sob o argumento de que esta seria uma necessidade premente que a sociedade machista teria impedido os homens de realizar. A princípio, a menos que o curso da história mostre o improvável, não parece uma recompensa vantajosa, se comparada a garantias sociais e existenciais sólidas para a sociedade de conjunto.