Lançado em 2022, Tár é uma produção dos Estados Unidos e da Alemanha, dirigido pelo diretor e ator Todd Field, conhecido por Entre Quatro Paredes (2001) e Pecados Íntimos (2006), ambos indicados ao Oscar. Com Tár, ele cria uma narrativa muito interessante que visa discutir identitarismo e política do cancelamento como marcas culturais do capitalismo tardio.
A trama acompanha a personagem de Lydia Tár (Cate Blanchett), uma maestrina de renome mundial, que se torna a primeira mulher a reger a prestigiosa Orquestra Filarmônica de Berlim. Reverenciada como gênio musical e intelectual, ela se vê no auge da carreira enquanto se prepara para a gravação de uma sinfonia de Mahler. Lésbica, é casada, tem uma filha e vive o sonho do reconhecimento e do sucesso.
No entanto, sua trajetória começa a desmoronar quando acusações de abuso de poder e manipulação surgem, levando a uma queda vertiginosa tanto na vida profissional quanto pessoal. O enredo, construído de forma meticulosa, utiliza de maneira muito inteligente o ponto de vista para gerar contradições e distanciamento sobre a trajetória da personagem, obrigando a audiência a refletir sobre as questões morais apresentadas.
Cate Blanchett entrega uma interpretação que é parte dessa estratégia. Sua Lydia Tár é uma mulher completamente inserida nas exigências da cultura contemporânea neoliberal. Obviamente, ela é recompensada pelas premiações e por símbolos de sucesso material, como a casa de arquitetura e design de luxo, e de sucesso intelectual por sua genialidade artística e domínio musical impecável.
As contradições surgem na forma que administra essas condições. Blanchet a interpreta, sem ser caricata, como um ideal de homem de sucesso, incluindo uma personalidade arrogante e autoritária. Essa representação cria um estranhamento bastante brechtiano que enriquece o tratamento dos materiais que o filme aborda, sem cair na obviedade.
No contexto contemporâneo, a película levanta uma questão interessante sobre identitarismo. Lydia ocupa um espaço historicamente masculino como regente de uma grande orquestra, mas também se beneficia do discurso pseudo progressista que a coloca como uma figura inspiradora para mulheres e minorias na música clássica. No entanto, quando seu comportamento autoritário e predatório vem à tona, sua identidade não a protege das consequências. Ela é cancelada pela cultura #metoo.
Um dos objetivos do filme é desconstruir a ideia de que pertencimento a grupos historicamente marginalizados automaticamente implica em conduta ética irrepreensível. Ele expõe as contradições do discurso identitário, onde poder e privilégio não estão necessariamente vinculados a gênero ou orientação sexual, mas sim às dinâmicas institucionais e sociais que regem o sistema econômico capitalista.
A personagem é a personificação do sujeito funcional dentro da lógica do capitalismo contemporâneo. Sua frieza e suas crenças na hierarquia e no poder não derivam de uma subjetividade masculina, mas da subjetividade exigida por um sistema que transforma pessoas em engrenagens. Sua ascensão e queda não são, portanto, a história de um indivíduo moldado para corresponder ao ideal de eficiência e controle que o próprio sistema exige e, ironicamente, descarta quando conveniente.
Essa construção contrasta com um dos poucos espaços onde Lydia parece se desprender das amarras do poder: sua relação com a filha. Diferente da manipulação que exercita em seu meio profissional, Tár demonstra um vínculo genuíno de proteção e afeto pela criança. A maternidade aparece no filme como um refúgio emocional, um espaço de autenticidade onde ela não precisa performar a brutalidade que o sistema lhe exige. Esse aspecto ressalta uma contradição profunda: enquanto no mundo profissional ela parece crer que precisa se moldar à figura dos grandes maestros que admira, reproduzindo não apenas seu talento, mas também seu autoritarismo, na intimidade com a filha há um vislumbre de outro tipo de subjetividade, um resquício de humanidade que se esvai quando ela lida com seus subordinados.
A justificativa de Lydia para seus métodos vem da evocação de maestros como Herbert von Karajan e outros grandes nomes da regência, sugerindo que seu comportamento não é diferente do que sempre foi normalizado no meio musical. Contudo, essa justificativa cria um paradoxo. Bilhões de homens no mundo não se comportam como Lydia Tár. A ideia de que um comportamento predatório e autoritário é “masculino” desconsidera que a vasta maioria dos homens não detém poder e, na verdade, ocupa posições operárias subalternas no mundo, sendo igualmente esmagados pelas engrenagens do sistema que ela conquistou. O que Tár evidencia, portanto, não é que a protagonista age como um homem, mas que ela age como qualquer pessoa disposta a se moldar aos valores de poder no capitalismo – uma escolha que não pertence a um gênero, mas a uma estrutura social.
Ao mesmo tempo, outra contradição se impõe. A personagem briga com a possibilidade de ser favorecida simplesmente por ser uma mulher. Ela quer o reconhecimento artístico pelo trabalho que faz. Nesse ponto, ela surge como uma figura anti-identitária. Uma das cenas que se destaca, e que será usada contra ela durante sua queda, é uma discussão com um aluno na famosa escola Julliard em Nova York, em que faz uma crítica ao identitarismo e ao cancelamento de obras por causa de manchas morais na vida de seus autores. Para a audiência pseudo-progressista e identitária, essa cena certamente torna a maestrina uma vilã. Para aqueles que querem entender essa guerra cultural com um pouco mais de profundidade, a contradição abre um caminho para um outro nível de entendimento. Em um dado momento, outra cena importante mostra suas origens como filha da classe operária norte-americana.
A reação dos que condenam Lydia Tár pelo seu comportamento autoritário torna-se assim parte da sustentação do sistema. A ironia maior é que ela só pode ser punida porque vive em um momento histórico em que a cultura do cancelamento transformou a denúncia pública em um espetáculo. Ela se vê em uma posição que seus antecessores nunca enfrentaram: um ambiente onde a exposição pública de seus erros não apenas destrói sua reputação, mas reverte o próprio sistema que antes a legitimava contra ela.
A cultura do cancelamento não é um mecanismo real de justiça. Pelo contrário, Tár mostra a seletividade desse processo: não é o sistema que é punido, mas sim suas vítimas. Em vez de questionar a estrutura de poder que permite que figuras como Lydia ascendam e exerçam autoridade sem restrições, o cancelamento se contenta em substituir indivíduos sem jamais alterar as engrenagens do jogo. A punição de Lydia não representa um avanço estrutural na forma como o poder é exercido. O filme evita qualquer resposta simplista: Lydia é punida não porque a estrutura de poder foi superada, mas porque novas regras foram estabelecidas sobre quem pode ser descartado. No fim, Tár não é um filme sobre uma maestrina que caiu, mas sobre um sistema que encontra novas formas de se perpetuar – e, nesse sentido, sua história é menos sobre sua personagem principal e mais sobre a ilusão de que expurgar indivíduos pode resultar em mudanças reais.
No fundo, Tár revela que o identitarismo, ao se descolar da luta de classes, pode acabar servindo à lógica do capitalismo neoliberal, funcionando mais como uma ferramenta de gestão social do que como um movimento realmente transformador. Se o problema fosse o sistema, Lydia Tár seria o reflexo de uma estrutura que precisa ser reformulada. No entanto, ao focar na punição individual sem alterar as bases de poder, o cancelamento apenas perpetua a ilusão de mudança sem jamais tocar na raiz do problema.