Desde a operação da resistência palestina de 7 de outubro, a Alemanha intensificou o combate ao que o governo e as instituições sionistas chamam de luta contra o “antissemitismo”. O fundamento para todas as medidas restritivas aos direitos fundamentais é a “razão do Estado” (Staatsräson).
Vale citar que o primeiro artigo que escrevi nesta coluna foi sobre a atuação do governo por meio das agências de inteligência – Verfassungsschutzämt (órgãos de proteção à Constituição) em face dos muçulmanos que vivem na Alemanha, bem como algumas instituições de defesa da Palestina, como o Samidoun.
Os pronunciamentos do governo em audiências públicas que ocorrem periodicamente na Alemanha são, desde então, no sentido de esclarecer e, não raro, de sustentar mentiras deliberadas sobre o fornecimento de armas a Israel, bem como de tentar legitimar as medidas para combater o “extremismo” dos imigrantes e também dos nascidos na Alemanha com ascendência de imigrantes. Dentre as medidas tomadas, estão as interceptações das comunicações e as operações policiais de repressão a estabelecimentos comerciais, privados e religiosos.
Na democracia constitucional alemã, vê-se a polícia desferir um soco em uma mulher (veja aqui outro vídeo que demonstra a brutalidade da polícia contra outra mulher), perseguir e deter crianças, agir violentamente contra estudantes em manifestações pacíficas. E tantos outros infinitos exemplos de uma brutal repressão contra qualquer manifestação pública que apoie os palestinos.
Tal como ocorre no Brasil, a mídia segue os ditames imperialistas e serve descaradamente aos interesses sionistas. Não fosse pelos tímidos documentários produzidos pelo canal Arte, os quais nem sequer arranham a História de Israel e da Palestina, poderia se afirmar que a mídia pública alemã não passa de um serviço de comunicação para o governo israelense. Ouvem-se raras vozes contra o genocídio na mídia alternativa, como o NDS e a TRT Deutsch, e, na política, apenas a Liga Sahra Wagenknecht ousa criticar as medidas do governo em apoio às ações de Israel. Raros são os jornalistas críticos ao governo israelense que têm voz na TV alemã. Entretanto, a mídia sionista continua tendo sua ampla liberdade constitucional fortemente protegida.
A razão do Estado
Staatsräson é a palavra usada pelo governo e reproduzida pelos veículos de comunicação para justificar o apoio incondicional do governo alemão ao governo de Israel. Trata-se de mais um vocábulo jurídico fundado em expectativas de justiça, um belo discurso moral sem conexão com a História e sem compromisso com a realidade. O site do governo explica que o termo já não desempenha o mesmo papel relevante de outrora, já que “nos últimos anos os terroristas forçam o Estado a agir contra a lei”.
O discurso de Angela Merkel em 2008 foi lembrado pelo governo alemão para justificar seu apoio incondicional a todos os atos do governo israelense contra os palestinos, desde sempre. O argumento de combate ao terrorismo tenta justificar e legitimar todas as ilegalidades cometidas por ambos os governos.
O governo alemão segue atuando tanto interna quanto externamente de maneira contrária às normas internacionais e aos princípios jurídicos. Sendo a Alemanha um dos principais países imperialistas e, considerando sua completa submissão aos interesses norte-americanos, o que se vê claramente é a degeneração do Estado de Direito.
A resolução
A conjuntura desafiou as instituições do Estado burguês: as inúmeras e numerosas manifestações públicas pró-palestina nas ruas, nas mídias sociais, nas mídias alternativas levaram o parlamento alemão a tomar medidas mais “efetivas”. O genocídio não pôde ser coberto e esteve o tempo todo nas mãos de qualquer pessoa que tem acesso à internet. A pressão nas ruas não arrefeceu e os atos do governo de Israel não foram normalizados com o decorrer do tempo. A cada dia ficava mais difícil esconder a verdade e impedir que cada vez mais pessoas conhecessem a História e pudessem enxergar a realidade. As vozes pró-palestina não se calaram nem mesmo diante da brutal violência do Estado alemão.
Finalmente, em 19 de novembro de 2024, o parlamento alemão (Bundestag) aprovou uma resolução contra o antissemitismo. A moção “Nunca mais é agora: proteger, preservar e fortalecer a vida judaica na Alemanha” foi apresentada pelo SPD, CDU/CSU, Grüne e FDP. Quer dizer, a social-democracia e os verdes se uniram aos conservadores e liberais para editar uma norma que visa calar as vozes que propagam a História do Estado de Israel e sua atuação contra os palestinos. Por meio desta passa a ser legal a repressão contra qualquer manifestação pública contra o governo de Israel, o que equivale, obviamente, a reprimir toda e qualquer organização social ou manifestação individual que condene desde a existência até as medidas de apartheid impostas aos palestinos por Israel.
O que era antes uma discussão política relativamente aberta na sociedade alemã passa a ser um problema dos Tribunais. Houve certa resistência de alguns setores acadêmicos e sociais sobre a imprecisão da resolução, cuja definição de antissemitismo é claramente abrangente e capaz de tornar criminoso o exercício das liberdades públicas. Foi sugerido, então, por especialistas, que se adotasse a definição de antissemitismo dada pela IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance), uma organização composta por 34 países além da Alemanha, em 2015 – “adotam a seguinte definição de trabalho não juridicamente vinculativa de antissemitismo: O antissemitismo é uma percepção particular dos judeus que pode ser expressa sob a forma de ódio contra os judeus. O antissemitismo é dirigido, por palavras ou atos, contra indivíduos judeus ou não judeus e/ou os seus bens, bem como contra instituições da comunidade judaica ou organizações religiosas” (Tradução livre).
Seja em língua portuguesa ou alemã, por este conceito, pode-se reprimir qualquer ato ou manifestação que envolva de modo direto ou direto o Estado e/ou o governo de Israel em qualquer tempo.
Trata-se de uma medida claramente inconstitucional, mas em tempos de crise do capitalismo, o Direito é o primeiro a ser vilipendiado.
Cultura jurídica degenerada
O antissemitismo na Alemanha ainda é encarado como um problema a ser combatido. Com efeito, trata-se de uma marca indelével na memória da sociedade alemã. Nem de longe pretende-se repetir o horror infligido aos judeus. O curioso é que a preocupação das instituições é apenas com os judeus israelenses. Outras vidas não importam e suas perdas são consideradas pelas autoridades como efeitos colaterais de uma “guerra” contra o terrorismo. Como se fosse aceitável juridicamente e justificável moralmente. O argumento do combate ao terrorismo, cujo conceito também é impreciso e abrange os mais variados atos de legítima resistência anticolonial, tem como intuito tornar legal o que é claramente ilegítimo.
Os alemães são mesmo muito bons com processos e procedimentos. As instituições jurídicas funcionam de modo tão sofisticadamente regulamentado que se assemelham a uma verdadeira máquina. Uma máquina de moer gente.