Quase ninguém fala sobre Bizâncio. Quando muito, o nome aparece em alguma nota de rodapé de um livro escolar, como se o Império Romano tivesse simplesmente evaporado em 476 d.C., deixando um vazio de mil anos entre Roma e o Renascimento. É uma amputação silenciosa: o corpo da civilização ocidental segue, mas sua cabeça — a cultura, a língua, a administração, a continuidade do pensamento clássico — ficou esquecida em Constantinopla. Colin Wells, em De Bizâncio para o Mundo, faz justamente o movimento inverso: ele reconecta os fios que a história oficial desfez. Já C. W. C. Oman, em The Byzantine Empire, com seu estilo enciclopédico e quase arqueológico, descreve a estrutura e os séculos de resistência de um império que foi mais herdeiro de Roma do que qualquer reino bárbaro que o sucedeu.
Mas é curioso notar como esse império ainda é um estrangeiro dentro da própria história. Na Grécia, o tema se confunde com a identidade nacional — afinal, Bizâncio era grega em língua, arte e alma. Na Turquia, por outro lado, o passado bizantino é quase um prólogo ao que importa: a conquista otomana e a transformação de Constantinopla em Istambul, símbolo do triunfo do Islã turco. No Ocidente, então, Bizâncio virou uma espécie de fantasma incômodo. Preferimos acreditar que Roma caiu e que a Europa renasceu sozinha, como se não houvesse mil anos de continuidade, de escrita, de arquitetura, de pensamento e de fé entre uma e outra.

No entanto, a verdade é mais complexa. Roma não caiu — migrou. Justiniano, no século VI, ainda tentou reunificar o império, reconquistando parte do norte da África e da Itália, com seu general Belisário. As muralhas de Constantinopla, o ouro de Santa Sofia e a burocracia imperial mantiveram acesa a chama da Antiguidade enquanto o Ocidente se dividia entre feudos e mosteiros. Bizâncio não apenas sobreviveu; ele se reinventou. Foi monarquia, teocracia, império militar e centro cultural. Guardou os manuscritos gregos que depois alimentariam o Renascimento. Traduzia, copiava, reinterpretava Aristóteles, Homero, Hipócrates. Wells insiste: sem Bizâncio, não haveria nem Florença, nem Oxford, nem Paris medieval.
A Luz que Restou
Expansão do Império no século VI (acima), e sua redução durante a Baixa Idade Média, lenta decadência que resultou na queda, em 1453, quando já restava pouco mais que a própria cidade de Constantinopla.
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Há algo de paradoxal na forma como Bizâncio preservou o mundo. Enquanto o Ocidente mergulhava na Idade Média feudal, onde a instrução era privilégio clerical e a alfabetização beirava o inexistente, Constantinopla mantinha uma burocracia letrada. Não se trata, claro, de uma sociedade “educada” no sentido moderno — mas o suficiente para garantir uma elite capaz de pensar, registrar e administrar. É essa continuidade do saber que Oman destaca: o Império Bizantino, mesmo em guerra constante, sustentava escolas, arquivos, tradutores e copistas. Ali, a cultura nunca deixou de ser instrumento de poder.
Essa estabilidade intelectual, no entanto, não garantiu prestígio posterior. A narrativa ocidental preferiu exaltar Carlos Magno, as Cruzadas ou o humanismo italiano, deixando de lado o império que manteve viva a herança greco-romana por mais de mil anos. Colin Wells lamenta esse esquecimento: quando o Ocidente “descobriu” Aristóteles, Platão e Galeno, eles já estavam há séculos sendo estudados e preservados em Bizâncio. Não havia nada de novo — apenas o retorno de algo que nunca se perdeu.
Há também uma questão política no esquecimento. Bizâncio era cristão, mas ortodoxo; europeu, mas oriental; romano, mas grego. Era, em suma, uma civilização de fronteira — e as civilizações de fronteira costumam incomodar. Sua teologia complexa, suas disputas iconoclastas, sua diplomacia refinada e sua arte exuberante pareciam pouco práticas aos olhos do Ocidente latino, que preferia o vigor da espada e da fé. Assim, o império foi sendo reduzido a um adjetivo: “bizantino”, sinônimo de intrincado, confuso, inútil. É o maior insulto que se pode fazer a uma civilização que, na verdade, sustentou o mundo enquanto o mundo esquecia de si.

Bizâncio caiu em 1453, mas sua queda foi mais simbólica do que cultural. A cidade tomada pelos otomanos já era o que restava de um passado longo demais para caber em uma única crônica. Seu espírito, porém, se espalhou: nas universidades italianas, nos manuscritos que alimentaram o humanismo, na arquitetura que inspirou catedrais, e até nas noções de império e diplomacia que moldaram a Europa moderna.
Ao fim, o que Colin Wells e Charles Oman nos lembram, cada um à sua maneira, é que a história do mundo não se divide entre Antiguidade e Modernidade, mas entre memória e esquecimento. Bizâncio foi o último esforço humano para lembrar — lembrar de Roma, de Atenas, de Alexandria, de tudo o que a barbárie não podia apagar. E talvez a pergunta que reste, hoje, não seja por que Bizâncio caiu, mas por que nós o deixamos cair duas vezes: uma em 1453, e outra, muito mais silenciosa, nos livros de história.





