Coluna

A liberdade acadêmica na Alemanha, se é que já existiu, acabou

"Na prática, a concepção de liberdade acadêmica é a mesma liberdade que assegura às classes dominantes manter seus privilégios e sua nefasta dominação"

Nesta semana, a Freie Universität (FU) Berlin (Universidade Livre) decidiu, a pedido de professores da instituição, alterar o formato do evento intitulado “Bedingungen eines Lebens, das zerstört werden soll. Rechtliche und forensische Perspektiven auf den laufenden Gaza-Genozid” (Condições de uma vida que está sendo destruída. Perspectivas jurídicas e forenses sobre o genocídio em curso em Gaza), o qual seria presencial no próximo dia 23 deste mês, para o formato online. O evento conta com a presença de Francesca Albanese, que é relatora especial na ONU desde 2022 e tem sido alvo de acusações de antissemitismo em razão de suas declarações sobre a atuação do Estado de “Israel” na Faixa de Gaza, bem como nos demais territórios ocupados. O arquiteto israelita Eyal Weizman, professor de Culturas Espaciais e Visuais em uma universidade de Londres, também foi convidado. Weizman é fundador do projeto Forensic Architecture, que descreve as ações israelitas na Faixa de Gaza como genocídio. O prefeito de Berlim, Kai Wegner, do partido CDU, havia pedido à FU o cancelamento do evento. Segundo a Forschung & Lehre, a dpa — Agência de Imprensa Alemã — informou que o presidente da FU, Günter M. Ziegler, defendeu a liberdade acadêmica: “Onde, senão numa universidade, se podem realizar debates controversos, ouvir pontos de vista e categorizar academicamente? A liberdade acadêmica é um bem constitucionalmente protegido que nunca pode ser suficientemente valorizado. A influência política e pública e a crescente polarização são prejudiciais para a ciência” (tradução livre). Não é a primeira vez que a liberdade acadêmica é ameaçada. Em abril do ano passado, a polícia invadiu o “Palästina-Kongress” (Congresso Palestina) e o encerrou cerca de duas horas após seu início. O evento contava com a presença de professores e ativistas apoiadores da causa palestina. Segundo o rbb24, o prefeito de Berlim havia criticado duramente o evento antes do seu início e declarado que “É intolerável que se realize em Berlim o chamado Congresso da Palestina. Não toleramos o antissemitismo, o ódio e o incitamento contra os judeus em Berlim. É por isso que a polícia de Berlim tomará medidas coerentes caso sejam proferidas declarações antissemitas ou cometidas infrações penais neste encontro.” (tradução livre).A interferência do governo local nos ambientes universitários, inclusive utilizando-se de força policial, tem sido relatada pela mídia e amplamente divulgada nas redes sociais desde a operação da resistência palestina em 7 de outubro de 2023.

A produção científica como meio de legitimação política

A universidade ainda não perdeu seu status de locus do saber por excelência na Alemanha. O rigor do método científico e a hierarquia nos espaços acadêmicos revelam a seriedade da produção científica alemã em diversas áreas do conhecimento. É bom lembrar que seriedade não significa qualidade nem inovação, sobretudo no que se refere às ciências humanas. As formas de consciência social, como a Ciência e a Cultura, correspondem à superestrutura política, como sabem (ou deveriam saber!) os marxistas. Ainda que a afirmação tenha sido objeto de intermináveis discussões e críticas (tantas vezes infundadas), ninguém nega que o avanço científico ocorre no mesmo tempo e lugar do avanço do capitalismo e, logicamente, da dominação burguesa. Nesse sentido, a tal liberdade acadêmica é mais uma afirmação baseada em moralismo político e está muito longe da realidade. Não raro, os políticos alemães possuem quase invariavelmente o título de doutor e, de acordo com o interesse de ocasião, têm seus trabalhos vasculhados por organizações que investigam e denunciam plágios em trabalhos acadêmicos. Nesta semana, Robert Habeck, atual vice-chanceler, ministro federal dos Assuntos Econômicos e da Proteção do Clima e candidato a chanceler nas eleições que ocorrerão no próximo dia 23, publicou um vídeo se justificando acerca de uma acusação de plágio em sua dissertação de doutoramento. O austríaco Stefan Weber, perito em plágio, apresentou ao chamado Ombudsstelle (órgãos extrajudiciais de reclamação e arbitragem), no último dia 10 de fevereiro, uma análise de 188 páginas sobre o plágio da dissertação de Habeck. Segundo o jornal Der Spiegel, há quatro anos Weber teria provado o plágio maciço da então candidata a chanceler pelo Partido Verde, Annalena Baerbock, atualmente ministra das Relações Exteriores. No caso do vice-chanceler, a acusação de plágio consiste no fato de ele ter feito citações de fontes como primárias em afirmações copiadas de comentadores. A Universidade de Hamburgo considerou inconsistentes as acusações e manteve o título de Habeck. No Brasil, não é difícil encontrar informações inconsistentes em currículos de membros do governo e até de ministros do Supremo Tribunal Federal. Quando ainda era desembargador indicado ao STF, Kassio Nunes foi acusado de incluir em seu currículo informações acadêmicas falsas: um pós-doutorado em Direito Constitucional pela Universidade de Messina, na Itália, e um postgrado em Contratación Pública pela Universidad de La Coruña, na Espanha. O primeiro título trata-se, na verdade, de um ciclo de seminários e o segundo curso simplesmente não existe. O postgrado em Contratación Pública, de acordo com a instituição, foi um Curso Euro-Brasileiro de Compras Públicas. Embora tenha sido nomeado para o TRF-1 no governo Dilma, a indicação para ocupar a cadeira no Supremo foi de Bolsonaro, mas até jornais considerados de direita denunciaram as mentiras do ministro. Tanto no Brasil quanto na Alemanha, ainda que tratadas pelas instituições e pela mídia pública de modos diversos, as denúncias não impediram a assunção dos respectivos cargos nem a manutenção dos respectivos títulos. Isso denota que, ao menos, as instituições burguesas não primam pela verdade nem pela Ciência, como se costuma proclamar.

A serviço da manutenção do sistema

Na Alemanha, “Professor” é um título que goza de grande prestígio e credibilidade. Assim que ganham esse título — e, para isso, não basta o doutorado, mas sim anos de experiência acadêmica — os professores também adquirem o direito a essa tal liberdade acadêmica e, só então, são considerados como produtores de conhecimento científico e potenciais formadores de opinião. Em tempos de crise, tornaram-se intoleráveis as opiniões que possam ameaçar a estabilidade do sistema. Professores vêm sofrendo perseguição política, como foi o caso da professora Nancy Fraser, filósofa norte-americana alinhada ao pensamento da Escola de Frankfurt, talvez por isso mesmo seu prestígio na Alemanha. Apesar do reconhecimento acadêmico, a professora foi “desconvidada” da Universidade de Colônia, onde atuava como professora convidada. O motivo foi a subscrição dela na carta “Philosophy for Palestine”. Como relatam os principais jornais da mídia alemã, assim como ela, outros professores apoiadores da causa palestina, ainda que timidamente, também foram “desconvidados” de seus cargos em diversas universidades. Não somente professores estrangeiros, mas os próprios alemães que ousam confrontar os interesses da burguesia e ações do governo também são perseguidos. É o caso da professora de política europeia da Universidade de Bonn, Ulrike Guérot. Ela foi demitida do cargo em um processo administrativo no qual foi acusada de plágio. O tribunal considerou fundadas as acusações de plágio no livro de Guérot “Warum Europa eine Republik werden muss” (Por que a Europa deve tornar-se uma república), objeto da acusação que ensejou a demissão. Neste livro, Guérot teria citado várias vezes afirmações de outros autores sem as identificar corretamente, o que constitui também uma má conduta científica, além de plágio. Não por coincidência, a professora critica fortemente a política externa da Alemanha por seu alinhamento (subserviência!) aos Estados Unidos e, recentemente, sua atuação na guerra da Ucrânia. As verdades inconvenientes que as instituições acadêmicas produzem (ou poderiam produzir) são literalmente desprezadas ou até impedidas de serem desenvolvidas e/ou divulgadas. Na prática, a concepção de liberdade acadêmica é a mesma liberdade que assegura às classes dominantes manter seus privilégios e sua nefasta dominação.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.