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Vanete Santana-Dezmann

Pesquisadora, professora, tradutora e editora. Correspondente pelas Jornadas Monteiro Lobato e Encontros com Lobato, juntamente com John Milton. Atualmente, é pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). Tem pós-doutorado em Estudos da Tradução (USP), estágios de pesquisa no Goethe-Museum de Düsseldorf; doutorado em Teorias de Tradução (UNICAMP). Com mestrado na Universidade de Mainz, Livre de Berlim, é mestre na mesma área. Graduou-se em Letras na UNICAMP. Como pesquisadora, tem interesse nas áreas de defesa e prática da tradução de livros “Rheinês”, de Mainz, de Monteiro Lobato, para a língua alemã.

Coluna

Seria Lobato realmente racista?

"Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a denunciar a situação degradante a que escravizados foram submetidos e a que ex-escravizados continuavam sendo"

Artigo originalmente publicado em Observatório Lobato: https://observatoriolobato.blogspot.com/2024/03/seria-lobato-realmente-racista.html

Por favor, analise as informações abaixo e responda por conta própria.

  1. Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a denunciar a situação degradante a que escravizados foram submetidos e a que ex-escravizados continuavam sendo mesmo três décadas após a assinatura da Lei Áurea. Ver os contos “Os negros” e “Negrinha”, respectivamente.
  2. Lobato foi o primeiro escritor brasileiros a colocar uma mulher negra, analfabeta e pertencente à terceira idade como integrante do núcleo de protagonistas de uma série de estórias (ver a atuação de Tia Nastácia nas estórias d’O Sítio do Pica-pau Amarelo). Um dos melhores exemplos do alto nível em que colocou Tia Nastácia se encontra no livroA reforma da natureza. Devido a seu bom-senso, Tia Nastácia foi convidada a ir à Europa aconselhar os estadistas mais poderosos do período da II Guerra Mundial (incluindo-se Mussolini e Hitler) sobre como alcançar e preservar a paz.
  3. Lobato foi a primeira voz – e talvez única no início do século XX – a anunciar o que hoje é obvio, mas que não o era há um século: “Preto também é gente.” (ver a última frase do livroCaçadas de Pedrinho).
  4. Lobato foi o único escritor brasileiro a escrever um romance inteiro para mostrar os malefícios que a aplicação da eugenia negativa (a eugenia darwinista) poderia gerar. Ver o romanceO choque das raças ou o presidente negroe ver também a diferença entre eugenia darwinista e eugenia lamarquiana (esta, considerada positiva; nela se englobam, por exemplo, as ações de imunização artificial da população por meio de vacinação). Veja também nota abaixo contendo as referências que Lobato faz às pessoas da etnia negra em no referido romance.
  5. Lobato foi o único a reconhecer o valor do trabalho do museólogo Manuel Querino, negro. Lobato chegou a publicar gratuitamente, por livre e espontânea vontade, uma nota sobre seu livro (de Manuel Querino), na qual ressalta que, por ser negro, Querino precisou despender muito esforço – mais do que teria que ter despendido se fosse branco – para alcançar o elevado patamar a que chegou. Também não mediu esforços para publicar Lima Barreto e reconhecia em Machado de Assis o melhor escritor brasileiro.

“Manuel Querino é membro do Instituto Histórico da Bahia e é preto, como no-lo revela o seu retrato. Isto só lhe acrescenta valor. Ser preto é ser humilde, partir do nada, encontrar na vida todos os óbices do preconceito social e despender para obtenção das coisas mínimas um esforço duplo do requerido pelos que nascem limpos de pigmentos. Honra lhe seja pela árdua tarefa levada a cabo com tanta modéstia e discernimento. Não é nem faz obra de crítico, amontoa simplesmente material para que os Taines maiores e menores da terra impem de sábios à custa de esforço alheio. Subintitula o seu livro de Indicações biográficas – e reúne tudo quanto em anos de labor conseguiu colher relativo aos escultores, pintores e músicos baianos. Na escultura biografa 27 artistas, alguns escultores, a maioria simples santeiros.” Monteiro Lobato, sobre Manuel Querino, em “Revista do Brasil”, n. 16, abr. 1917.

  1. Enquanto esteve preso, por discordar do Presidente Getúlio Vargas sobre a questão da exploração do petróleo no Brasil, Lobato alfabetizou seus companheiros de cela, a maioria pobres e negros. Lobato também forneceu carta de recomendação a cada um que foi libertado durante o período em que ele esteve preso e indicou pessoas de fora da prisão a quem poderiam procurar, em seu nome, para solicitar emprego. O próprio Lobato deixou seu endereço com os companheiros de cela. Depois que saiu da prisão, foi procurado por um ex-colega detento, um negro que esteve preso por matar uma pessoa. Lobato o contratou como jardineiro. Sua esposa, Purezinha, tinha muito medo do homem devido a seu histórico; mesmo assim, Lobato o manteve em sua casa.

Eu poderia citar mais elementos para sua análise, mas sei que em sua cabeça martelam algumas frases descontextualizadas de Lobato, frequentemente citadas por quem pede que seus livros sejam novamente queimados em praça pública – exatamente o que a Igreja Católica fez quando ele ainda estava vivo… Após a missa das manhãs de domingo, atrás da das igrejas católicas, uma grande fogueira era acesa com os livros de Lobato levados pelas crianças para os professores e professoras ao longo da semana a troco de “ponto positivo” na nota. Então, vamos a elas.

  1. “Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro como uma macaca de carvão” – sempre citada para dar a entender que o termo macaca de carvão é um xingamento usado por Lobato para detratar Tia Nastácia por ela ser negra.

Primeira lição – de português: nas orações acima (Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro como uma macaca de carvão” trepa em mastros, árvores etc) não há uma comparação entre substantivos (Tia Nastácia e macaca de carvão), mas sim entre verbos: ela trepou/subiu no mastro de São Pedro como uma macaca trepa/sobe em tudo que há para subir.

Segunda lição – de biologia: macaco de carvão ou macaco carvoeiro é o nome popular do macaco buriqui, ou muriqui (em língua tupi-guarani). O nome indígena deste tipo de macaco significa “aquele que balança de um lado para o outro”. A fêmea é descrita como tendo o ventre avantajado. Se imaginarmos o movimento de alguém com abdômen avantajado subindo em um mastro, conseguiremos supor que o balanço lateral é mais pronunciado do que o movimento feito quando um corpo esguio sobe o mastro.

Até hoje, quando alguém não para quieto, pula e sobe nas coisas, é chamado de macaco. Qual criança nunca foi chamada à atenção por um “desce daí, tá parecendo macaco” ou “desce daí, seu macaquinho”?

Então, Lobato também comparava o ato de saltar ou subir em algo com destreza ao ato praticado por macacos. Isso aparece em toda a obra de Lobato como um elogio à destreza da pessoa – seja ela branca ou negra. No caso específico de Tia Nastácia, ele não comparou seu movimento ao de um macaco genérico, mas ao do muriqui, que balança bastante de um lado para o outro e, sendo fêmea, balança mais ainda. Para encerrar, é preciso contar que o muriqui tem a pelagem alaranjada. Basta dar um google para confirmar as informações acima. Por fim, é preciso lembrar que, antes da década de 70, a maior parte da população brasileira era rural e o muriqui era conhecido por praticamente todo brasileiro dos estados que se estendem do nordeste ao sul, onde havia uma extensa faixa da Mata Atlântica. Por tanto, ao estabelecer a comparação, todos os leitores sabiam que lá estava escrito “Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro balançando pronunciadamente de um lado para o outro.”. Por que Lobato usou uma metáfora – e não simplesmente escreveu a frase anterior? Por que ele escrevia literatura – e não texto técnico.

  1. “Cheguei verde [nos EUA]. Deveria ter vindo quando enforcavam os negros” – frase de uma carta de Lobato a Godofredo Rangel apresentada como expressão do desejo de assistir ao enforcamento de negros nos EUA. Trata-se, porém, de uma locução adverbial de tempo: “Cheguei aos EUA inexperiente do que se passava aqui. Eu deveria ter vindo no tempo em que enforcavam os negros, pois, naquela época (quando enforcavam os negros aqui nos EUA), meu livroO choque das raças ou o presidente negroseria útil para defender os negros aqui. Hoje, em pleno Harlen Renaissance (dê um google aqui também ou leia meu livro: SANTANA-DEZMANN, Vanete. Entre metafísica, distopia e mecenato. São Paulo: Os caipiras, 2021.), este meu romance não faz sentido nos EUA.”
  2. “Lobato e seu livro ‘O presidente negrro’ eram tão racistas que nem os norte-americanos/estadunidenses quiseram publicar esse livro”, dizem as más línguas, sedentas por fogo e personagens saídas da distopia “Fahrenheit 451”. Não é nada disso. Acontece que em 1926 a mecenas das artes em Nova Iorque, poderosa nos EUA e famosa no mundo todo, era ninguém menos do que A’Lelia Walker, herdeira da fábrica de alisantes de cabelo da Madam C. J. Walker (sim, aquela da péssima série da netflix – recomendo o livro, escrito pela bisneta, A’Lelia Bundles). Nenhum editor dos EUA publicaria um livro em que o alisamento de cabelo foi responsável pela esterilização dos homens negros – todos os editores da época “comiam – ou, ao menos, queriam “comer” –nas mãos” de A’Lelia. Tudo isso se encontra documentado em meu livro acima referido.
  3. Quanto à outra forte acusação que induz os personagens de “Fahrenheit 451” a quererem “queimar” a memória de Lobato e sua obra – a acusação de que Lobato desejava que houvesse no Brasil um movimento como a KKK – infelizmente ainda não posso emitir análise, pois ainda não tive acesso à carta em que tal desejo teria sido expresso. De qualquer modo, informar-se sobre a origem da KKK, sobre um tal Blue Vein Circle, sobre as divisões entre diferentes tipos de “não brancos” vigentes no início do século XX e sobre asfakenewspublicadas pela imprensa carioca à época sobre Lobato já fornecerá importante material para a análise da tal carta.
  4. Por fim, quanto às acusações de que Lobato era racista e sua obra também, por usarem “expressões racistas”, sugiro incendiar junto com a memória de Lobato a memória de W. E. B. Du Bois (vale outro google), ilustre negro e principal ativista pró direitos civis dos negros dos EUA no início do século XX, afinal ele batizou sua associação de National Association for the Advancement of Colored People (NAACP). Chamar os afrodescendentes de “pessoa de cor” é racista, não é? Vamos queimar esse racista do Du Bois também!

Nota 1: sobre a nota de Monteiro Lobato acerca de Manuel Querino

Nota sobre: Manuel Querino (1851-1923)

Escrita por: Monteiro Lobato

Publicada em: “Revista do Brasil”, n. 16, abr. 1917.

Disponível em: LOBATO, Monteiro. Críticas e outras notas, 2009, p. 153.

Dra. Vanete Santana-Dezmann

Manuel Querino

Retrato publicado no livro Artistas bahianos: indicações biographicas. 2. ed. melhorada e cuidadosamente revista. Bahia: Officinas da Empreza “A Bahia”, 1911.

Retrato acessível em http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/…/manuel…/

“Manuel Querino é membro do Instituto Histórico da Bahia e é preto, como no-lo revela o seu retrato. Isto só lhe acrescenta valor. Ser preto é ser humilde, partir do nada, encontrar na vida todos os óbices do preconceito social e despender para obtenção das coisas mínimas um esforço duplo do requerido pelos que nascem limpos de pigmentos. Honra lhe seja pela árdua tarefa levada a cabo com tanta modéstia e discernimento. Não é nem faz obra de crítico, amontoa simplesmente material para que os Taines maiores e menores da terra impem de sábios à custa de esforço alheio. Subintitula o seu livro de Indicações biográficas – e reúne tudo quanto em anos de labor conseguiu colher relativo aos escultores, pintores e músicos baianos. Na escultura biografa 27 artistas, alguns escultores, a maioria simples santeiros.” Monteiro Lobato

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Leia também:

1) O retrato falado do “racismo na obra infantil de Lobato” – Vanete Santana-Dezmann.

https://vanetesantanadezmann.blogspot.com/2021/01/o-retrato-falado-do-racismo-na-obra.html

2) Beloved, Amistad e Negrinha… libelos contra o racismo – Vanete Santana-Dezmann

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/dilemas-contemporaneos/beloved-amistad-e-negrinha-libelos-contra-o-racismo/

Nota 2: sobre a macaca de carvão

muriqui-do-sul (nome científicoBrachyteles arachnoides), também chamado simplesmente de mono-carvoeiro ou muriqui, é uma espécie de primata da família Atelidae e do gênero Brachyteles endêmico da Mata Atlântica brasileira. É uma das duas espécies existentes de muriqui, sendo a outra o muriqui-do-norte (nome científicoBrachyteles hypoxanthus). Ocorre principalmente nos estados do ParanáSão PauloRio de JaneiroEspirito Santo e Minas Gerais. Com quase 1,60 m de comprimento e pesando até 15 kg, o muriqui do sul é o maior primata não-humano das Américas. É uma espécie considerada como “criticamente em perigo” pela IUCN[3] e “em perigo” pelo Ministério do Meio Ambiente. Isso se deve principalmente à alta fragmentação da Mata Atlântica e à caça ilegal, que pode levar pequenas populações reduzidas à extinção rapidamente.

O muriqui-do-sul tem longos braços e uma cauda preênsil, que permite a braquiação. Ao contrário do muriqui-do-norte, sua face é negra, sem manchas esbranquiçadas, e não possui o polegar vestigial. Os testículos são volumosos, consequência de um sistema de acasalamento promíscuo.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Muriqui-do-sul

Etimologia

Muriqui vem do tupi muri’ki e significa “gente que bamboleia, que vai e vem”. A espécie é conhecida como “povo manso da floresta”, graças a seus hábitos pacíficos e de permanência em grupo.[4][5]

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Muriqui-do-sul

Nota 3: sobre o romance O choque das raças ou o presidente negro

O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontado como um romance racista. Para que cada um possa avaliar por si mesmo as referências a pessoas da etnia negra e a Jim Roy que se encontram no livro, reproduzo-as abaixo.

A quem quiser conhecer minha análise, indico Entre metafísica, distopia e mecenato, publicado em 2021. O livro pode ser adquirido diretamente comigo pelo e-mail vanetedezmann@gmail.com.

Quem sabe os excertos estimulem a leitura do livro do romance de Lobato por completo. Sua primeira edição se encontra reproduzida em Entre metafísica, distopia e mecenato.

Parte de minha análise também pode ser acessada em algumas palestras disponíveis na internet: “Por que O presidente negro não foi publicado nos Estados Unidos”; “Quem fala por Lobato em O presidente negro?” e “Entre metafísica, distopia emecenato”.

Para entender algo, nada melhor do que conhecer. Conhecimento é poder! O conhecimento liberta!

Excertos 1 a 3: descrição de Jim Roy

Era Jim Roy, na realidade, um homem de imenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade.

Como organizador e meneur, talvez superasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos exemplos apresentava de uma eficiência igual à sua. Consagrara-se desde muito jovem à execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita compreensão do material humano sobre que pretendia agir.

Lobato, 2021, p. 259.

Ia realizar um ideal. O problema negro da América teria com ele no governo a única solução justa.

Lobato, 2021, p. 316.

E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou na América.

Lobato, 2021, p. 316.

Excerto 4

Às 9 e 45, aproximou-se da janela e espalhou o olhar pelo casario de Washington. O panorama que viu, entretanto, foi bem diverso. Descortinou todo o lúgubre passado da raça infeliz. Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos séculos, o humilde kraal africano visado pelo feroz negreiro branco, que em frágeis brigues vinha por cima das ondas, qual espuma venenosa do oceano. Viu o assalto, a chacina dos moradores nus, o sangue a correr, o incêndio a engolir as palhoças. Depois, o saque, o apresamento dos homens e mulheres válidos, a algema que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia dois a dois em comboios sinistros, tocados a relho para a costa. Viu, como goelas escuras, abrirem-se os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne de eito. E recordou o interminável suplício da travessia… Carga humana, coisa, fardos de couro negro com carne vermelha por dentro. A fome, a sede, a doença, a escuridão. Por sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima do tabuado, rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa só: crueldade fria…

Viu depois o desembarque. Terra, árvores, sol – não mais como em África. Nada deles, agora – nem a terra, nem as árvores, nem o sol. Caminha, caminha! Se um tropeça, canta-lhe o látego no lombo. Se cai desfalecido, trucidam-no. A caravana marcha, trôpega, e penetra nos algodoais…

Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois que o negro chegou. Além das chuvas, havia a regá-los, agora, o suor africano – suor e sangue.

Viu dois séculos de chicote a lacerar carnes e ouviu dois séculos de lágrimas, gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a América ir saindo dessa dor, como a pérola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha…

Viu, depois, a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O branco bom disse: Basta! Ergueu exércitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou a pobre carne-coisa.

As algemas caíram dos pulsos, mas o estigma ficou. Às algemas de ferro se substituíram as algemas morais do pária. O sócio branco negava ao sócio negro a participação de lucros morais na obra comum. Negava a igualdade e negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima do sangue, consagrasse a equiparação dos dois sócios.

E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração – e que só há justiça na terra quando a força a impõe.

Jim: “Hei de fazer-me força e impor a justiça”, murmurou o grande negro.

Em sua testa larga, profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e Jim permaneceu imóvel, como siderado por uma ideia de gigante.

Lobato, 2021, p. 279-280.

Excerto 5

Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão, e tremia, de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle. Toda a barbárie atávica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes, injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre carne até o advento de Lincoln e, depois de Lincoln, todas as humilhações da desigualdade de tratamento – essa legião de fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de sob a laje que mão imprudente levanta. E a raça maior, que através dos séculos não se atrevera a sonho maior que o da mesquinha liberdade física, passou a sonhar o grande sonho branco da dominação… (…) Amava Jim a América. Nos alicerces do colossal edifício, o cimento ligador dos blocos fora amassado com o suor dos seus ancestrais. A América surgira do esforço braçal de um dirigido pelo esforço mental de outro, e, pois, tanto lhe falava ao sangue como ao do mais orgulhoso neto dos pioneiros louros.

Lobato, 2021, p. 288-289.

Excerto 6

Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente de pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas.

Tremeu o negro diante da sua obra – e, sem vacilar, foi ao encontro do Kerlog. O momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.

Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrárias nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um nobre objetivo comum.

Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 7

No primeiro ímpeto, Kerlog apostrofou o chefe negro.

Kerlog: “Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e ameaçada de morte!”

O negro cravou no líder branco os olhos frios, por um instante animados de estranho fulgor.

Jim: “Não minha, presidente Kerlog! Não é minha esta obra. É sua, é dos seus, é de Washington, é de Lincoln. Vós, brancos mentistes na lei básica. E ou confessais que mentistes ou reconheceis que a situação é perfeitamente normal. Que aconteceu, presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas libérrimas conferiram a vitória a um cidadão elegível. Acha o presidente Kerlog que o pacto Constitucional sofreu lesão?

Naquele peito a peito, Jim Roy dominava o adversário.

Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 8

Jim: “Mas não se trata disso”, continuou ele. “O momento não é para recriminações – e nesta matéria o presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro… O fato está consumado e, como chefes supremos das duas raças, a nós só incumbe atender à salvação comum. Se não contivermos de rédeas presas – eu, o monstro da ebriedade negra, o presidente Kerlog, o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa…”

Kerlog: “Ninguém sabe disso melhor que eu”, retrucou o chefe da nação. “Nos estados do Sul já lavra o incêndio…”

Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 9

O negro deu um salto.

Jim: “Jim o apagará! Jim manterá em cadeia de aço a pantera africana. Ele a domina com os olhos, como o soba a dominava no kraal donde a rapina dos brancos a tirou. Jim é rei!”

Era tal a firmeza com que emitia o grande negro aquelas palavras que o tom de superioridade do líder branco se demudou em admiração.

Viu Kerlog que tinha diante de si não um feliz aventureiro político, mas uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos. Pela primeira vez, enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E, do fundo do coração, lamentou Kerlog que a incompatibilidade racial o separasse de tamanho vulto.

Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 10

Jim prosseguiu:

Jim: “Mas só o farei se o Presidente Kerlog, do seu lado, açaimar o orgulho branco. Eu domino com o olhar e a palavra terrível. O Presidente Kerlog domina com a força do estado. Em nossas mãos está, pois, a paz da América.”

O líder branco baixou a cabeça. Meditava.

Kerlog: “Pois salvemos a América, Jim!”, disse erguendo-se. “Açaima tu a pantera negra que meterei luvas de ferro nas unhas da águia loura.”

Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.

Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 11

Kerlog: “Mas a pantera que conte com o revide da águia!”, concluiu o líder branco depois que as mãos se desapertaram. “A águia é cruel…”

Jim Roy retesou-se de todos os músculos, como a fera que se põe em guarda.

Jim: “Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rasga a sua Carta e afoga-se num mar de sangue ou submete-se à minha direção?”

Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 12

Kerlog olhou-lhe firme nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina:

Kerlog: “Não ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu a enfrente com palavras. Estamos, face a face, não dois homens, sim duas almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento o presidente Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou nos algodoais. Como há razões de estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O Sangue não raciocina, como os filósofos. O Sangue sidera, qual o raio. Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas, como branco, só vejo em ti o inimigo a esmagar…”

Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 13

O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral contida nele transpareceu no fremir das ventas grossas.

Jim: “E não trepidará o branco em esmagar a América se for condição para esmagar o negro?”, rugiu.

Kerlog retrucou calmamente, como se pela sua boca falasse o próprio deus do Orgulho:

Kerlog: “Acima da América está o Sangue.”

Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 14

Jim abaixou a cabeça. Viu aberto à sua frente o eterno abismo. O dolicocéfalo louro tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos vales dos Ganges partira para a atrevida aventura conquistadora e vencera sempre, e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita, extraíra a sua grande arte, a Guerra. Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo das águas e a amplidão dos ares. E, com esse feixe de armas incoercíveis, rodeara, como de baionetas, o diamante do seu Orgulho.

Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 15

Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que, sereno, o arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou. Jim sentiu-se retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e, mais firme que nunca, disse, com durezas de rocha na voz:

Jim: “Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A América é tão sua como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”

 Kerlog: “A justiça está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América. Mas o Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E, para a justiça do Sangue Ariano, é um crime dividir a América.

Jim baixou a cabeça novamente e emudeceu. Pela segunda vez, sentia-se retina ofuscada pelo sol.

Lobato, 2021, p. 291.

Excerto 16

O presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros largos, disse:

— “Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que contemplo tua figura imensa, mas inútil… Adeus. Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças, mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é nobilíssimo, mas à solução de justiça com que sonhas só poderemos responder com a eterna resposta do nosso orgulho: Guerra!”

E os dois seres humanos, subsistentes no imo dos dois líderes raciais, abraçaram-se com lágrimas…

Miss Jane fez uma pausa, atenta à minha comoção. Aquele duelo de gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história oferecera lance mais augusto – nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas, a Justiça Humana, e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue, um raio cego…

Ayrton: E depois?, perguntei. Reentrou na paz a América?

Jane: Sim, respondeu Miss Jane. Os dois líderes entraram a agir de pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a do outro. A pantera negra recolheu as garras e a águia loura enluvou as unhas.

Mas o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus avós no peito dos fulvos leões africanos – mortalmente…

Lobato, 2021, p. 290.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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