Quem é professor sabe muito bem que os dias de prova são os piores: pior para os alunos que não se prepararam, estudando suficientemente; pior para o professor, quando esquece um livro, jornais, uma revista qualquer, que ajudem a passar o tempo tedioso da espera dos exames. Assim, certo dia de prova, em que me lembrava tardiamente de não haver trazido nada para ler, sou abordado, antes de entrar na faculdade, por um rapaz gentil e sorridente, com um livro nas mãos para me presentear e, sem saber, salvar-me da morosidade das próximas horas. O rapaz era o poeta e editor Ricardo Escudeiro. O trabalho, seu segundo livro de poesia, Rachar átomo e depois, lançado em 2016, pela editora Patuá. Dali em diante, nos tornamos amigos; busquei por seu primeiro livro, Tempo espaço retratos, 2014, Patuá; em 2019, foi a vez de A implantação de um trauma e seu sucesso, o terceiro livro, ainda pela Patuá, agora em cooperação com a editora Fractal, dirigida pelo próprio Escudeiro, quem, nas biografias resumidas nos finais dos livros, nunca escondeu duas profissões além de poeta e agitador cultural: metalúrgico e professor.
Sobre sua poesia, deixo as indicações de seus livros para quem for buscar por eles; quero, em seguida, falar antes de sua postura poética, o que não deixa de ser, a seu modo, falar indiretamente de sua poesia. O Escudeiro, faz menos de um ano, ingressou na pós-graduação em criação literária, em nível de mestrado, sob minha orientação nos cursos de Letras da FFLCH-USP. Em seu trabalho, ele discute os temas associados, via de regra, à chamada literatura periférica, contrapondo-se ao esperado dela, seja por leitores pequeno-burgueses, sempre dispostos a não ver na periferia nada além de miséria e violência, seja pela crítica identitarista pautada por conceitos ingênuos ou confusos de classe social, etnia, gênero.
Lendo os poemas d’A implantação de um trauma e seu sucesso, pensei ter reconhecido menções ao Hyoga, personagem do anime Cavaleiros do Zodíaco, o cavaleiro da constelação de Cisne. As artes marciais são tematizadas com frequência na poesia do Escudeiro, menções a socos, chutes, jabs já apareciam nos livros anteriores. O que me chamou atenção, contudo, na referência ao cavaleiro de Cisne, não foi a alusão às artes marciais, mas a personagem por meio do qual ela é feita. O Ricardo é negro e é poeta da periferia, ele costuma apresentar-se assim, sua poesia, entretanto, coerente com seu projeto de pós-graduação em criação literária, dá novos sentidos aos temas das literaturas negra e periférica. Para prosseguir, cabe indagar que temas seriam esses.
Segundo o Escudeiro, e eu pude verificar isso também, já se insinua na literatura da periferia alguns tópicos, com os quais se espera caracterizá-la, seja enquanto estilo literário, seja enquanto expressão das lutas sociais do proletariado. Entretanto, quando ela se torna mais um produto da indústria cultural, via editoras comerciais, insinuam-se, dessa vez insidiosamente, valores burgueses, que projetam nas culturas de periferia seus usuais preconceitos de miséria intelectual, isto é, de falta de cultura própria, de bandidagem para as personagens masculinas, de prostituição, para as femininas… não raro, em discursos políticos oportunistas, típicos dos partidos pequeno-burgueses. O Ricardo Escudeiro – e ao lado dele vale mencionar, pelo menos, Lilia Guerra, Hélio Neri e o Caco Pontes –, contrariamente a isso, faz uma poesia que não é facilmente identificada com a literatura periférica, não porque não seja um produto seu, mas porque vai de encontro a tais temas insidiosos, que procuram transformar os cidadãos periféricos em ladrões, traficantes, sequestradores e prostitutas. Ou seja, a burguesia projeta seus próprios valores de bandidagem e prostituição em outras classes sociais, imaginando que todos se comportem como ela.
Evidentemente, sua poesia não se resume aos registros de personagens de desenhos animados vespertinos, em princípio, pensados para entreter crianças; vale lembrar, a propósito dessa arte também há muitos preconceitos, nessas animações, pelo contrário, são feitas discussões interessantes sobre classes sociais, sexualidade, amizade e companheirismo bem menos superficiais do que em novelas e seriados de televisão burgueses, com seus eternos dramalhões sem luta de classes. A poesia do Ricardo, por fim, vai além das lembranças de animes e mangás, tampouco sua luta não é aquela disseminada em academias burguesas, destinadas a modelar o sebo dos desocupados; trata-se, isto sim, de aprender a lutar para se defender dos avanços fascistas e da repressão do aparato policial… a luta expressa na poesia de alguém com as vivências de metalúrgico, professor e estudante, acostumado a enfrentar as costumeiras pancadarias na hora de fazer valer quaisquer reivindicações, inclusive, as reivindicações da poesia.
Artigo publicado, originalmente, em 25 de outubro de 2021.