O projeto mais violento para com o Estado Brasileiro nos últimos anos – a Reforma Administrativa (PEC 32/2020) do (des)governo Bolsonaro – voltou à cena política na medida em que é desenterrado novamente pelo Presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL).
O Presidente da Câmara dos Deputados defendeu a entrada da reforma na pautada Câmara como “agenda para 2024” e disse ser “o último pilar das reformas que o Brasil precisa fazer”. A reforma administrativa, segundo Lira, será discutida pelos líderes e só irá à votação após consenso entre os partidos. “Trata-se de uma proposta que mantém as conquistas, mas que, acima de tudo, busca eficiência e uma melhor prestação de serviço à população”, apontou.
Como se sabe, a chamada Reforma Administrativa foi aprovada em Comissão Especial, no dia 23/09/202, e está pronta para votação no Plenário da Câmara. No entanto, há um impasse entre o atual governo e os defensores da PEC 32/2020.
Em sua campanha eleitoral, Lula se comprometeu a trabalhar contra a Reforma Administrativa. Como tudo no Governo Lula, nada que foi defendido na campanha eleitoral é para ser realmente realizado. Coisas que ninguém acreditava que o Lula ia negar, como a revisão da Reforma Anti-trabalhista, ele nunca mais tocou no assunto.
Nesse caso da Reforma Administrativa as articulações ministeriais do Governo Lula denotam uma grande vacilação na sua rejeição, pois em alguns momentos o governo se coloca contra a PEC 32/2020; em outros, concordam com a ideia da Reforma Administrativa que não é a que está na PEC 32, mas como uma simples revisão dos métodos de avaliação de servidores, progressões de carreira mais lentas, além de salários iniciais mais baixos.
Já ocorreram mudanças estruturais através da implantação do Programa Gestão e Desempenho (PGD) e o novo modelo de concursos públicos unificados. A reafirmação do projeto por Lira, o “Primeiro-Ministro”, traz um grande perigo para os servidores públicos e o conjunto dos trabalhadores. Ele quer transformar a implantação da Reforma Administrativa como o coroamento de suas agressões às tentativas de reformas do Governo Lula, e toda e qualquer reivindicação popular, como a questão do marco temporal, visando se projetar à eleição de 2026.
Vale lembrar que, ainda no governo Bolsonaro, criador do projeto, não houve correlação de forças favorável à aprovação devido à luta da classe trabalhadora contra o desmonte generalizado do estado brasileiro. Segundo o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE), em 2024, não será diferente: vai ter luta! O sindicato se propõe a exercer pressão sobre os congressistas da Câmara e do Senado, assim como desenvolver uma grande campanha demonstrando os males que a Reforma Administrativa, caso aprovada, trará ao país.
O que propõe a Reforma Administrativa de Bolsonaro
Nas peças de propaganda da Reforma administrativa, o Governo Bolsonaro apresentava um cenário ruim da situação fiscal do Estado como justificativa da Reforma. Na verdade, o Estado brasileiro apresenta realmente um quadro dantesco, com grandes déficits primários e operacionais e um comprometimento total do Orçamento com as chamadas despesas obrigatórias. Bolsonaro, no entanto, não queria admitir que este quadro foi provocado pela política econômica implantada após o Golpe de Estado de 2016, que levou a eternização da recessão de 2015 e 2016, principalmente com o regime fiscal do teto de gastos.
Os Objetivos da Reforma
Nada disso tem a ver com o objeto da reforma, que é o suposto comprometimento das contas públicas com os gastos de pessoal. Na verdade, os dados mostram que não temos um Estado “inchado” de pessoal como querem nos fazer crer. No Brasil, apenas 12% dos trabalhadores são servidores, enquanto a média da OCDE (grupo que reúne a maioria dos países mais ricos) é de 18%. Se o Brasil fizesse parte da OCDE, estaria próximo das últimas posições em quantidades proporcionais. Além disso, desde 2018 há uma queda do número de servidores, causada por aposentadorias que não foram preenchidas pela ausência de concursos no governo Bolsonaro. Na verdade, muito mais que as despesas com pessoal, o Governo Brasileiro deveria se preocupar com o “serviço da Dívida”, o gasto com juros, que realmente absorve a maior parte do Orçamento anual, conforme gráfico abaixo:
O objetivo da Reforma não é, portanto, simplesmente resolver esses problemas fiscais, que tem seu foro próprio de resolução, ou seja, a política fiscal e tributária. São vários os objetivos da Reforma Administrativa de Bolsonaro. Antes de os abordarmos, é preciso ver a metodologia de implantação da Reforma. A intenção do governo era fazer a reforma administrativa em três fases:
- PEC 32/2020: Novo regime de vínculos, alteração organizacional da administração pública e fim imediato de alguns benefícios, tudo fazendo parte da constituição;
- Projetos de lei complementar seriam apresentados para tratar de gestão de desempenho, diretrizes de carreiras e cargos, funções e gratificações;
- Seria apresentado o Projeto de Lei Complementar do Novo Serviço Público tratando de direitos e deveres, estrutura remuneratória e organização das carreiras.
Trata-se, portanto, de uma Reforma muito abrangente, cujo objetivo principal foi criar uma nova estrutura de aparelho de Estado, totalmente adequada ao modelo econômico que vinha sendo reimplantado no país desde o Golpe de 2016, o modelo neoliberal periférico.
O Estado Brasileiro se organizou, após a Constituição de 88, como um Estado adequado ao modelo econômico neodesenvolvimentista, cumprindo aí seu papel de Estado de Bem Estar Social, para contrabalançar as tendências concentracionistas de renda oriundas da estrutura de classes sociais da sociedade brasileira. Dessa forma, trata-se de um Estado voltado para a oferta de serviços básicos de infraestrutura, juntamente com a oferta de serviços no campo da saúde, educação e assistência social. Para tanto, este estado teria que se organizar, no campo de sua estrutura administrativa, no Regime jurídico Único, o que garantia cumprir este papel sem comprometer a meta de dar bases para um regime democrático estável. Dessa forma, o Estado poderia cumprir as normas de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, como reza o Artigo 37 da Constituição. Para isto o funcionário público teria que representar o Estado, não se permitindo ser influenciado nas suas ações senão pela sua competência técnica e neutralidade quanto às questões político-partidárias e clientelistas.
Neste quadro se coloca também toda a regulamentação referente à estabilidade no emprego, ou seja, o desligamento do cargo de um servidor se daria apenas se descumprisse normas do estatuto do servidor, ou por aposentadoria por tempo de serviço. Com a implantação no Brasil, a partir da década de 90, do modelo econômico neoliberal periférico, o Estado adequado a esse modelo teria que ser bem outro.
A nova Administração Pública, como foi chamada pelos autores da proposta do Governo Bolsonaro, iria se caracterizar por uma perda de suas características de Estado de Bem Estar social, bem como de Estado desenvolvimentista. Em geral, diz-se que se trata de um Estado “liberal” voltado para o mercado. Sim, no que diz respeito à política econômica e a intervenção do Estado na economia, os governos golpistas foram retirando do Estado seu poder de regulação do mercado, até mesmo na questão do meio ambiente, que é uma questão de sobrevivência da Humanidade. Mas para Bolsonaro não existe civilização, existem interesses econômicos, por mais predadores que esses interesses podem ser.
No plano das outras reformas neoliberais, o que tem se apresentado como resultado é uma total submissão da sociedade e dos cidadãos à voracidade do capital privado, a começar pela Reforma da Previdência, que se ocupa de destruir a velhice, passando pela Reforma Trabalhista, que destrói totalmente qualquer proteção da força de trabalho contra essa mesma voracidade. Na Reforma Tributária, que não chegou a ser implantada no governo Bolsonaro, omite-se qualquer consideração com relação a uma equidade na distribuição de ônus e bônus entre o capital, o Estado e o cidadão trabalhador, centralizando-se apenas na questão dos impostos sobre consumo, que pesam mais sobre os trabalhadores. Infelizmente essa Reforma Tributária foi implementada pelo Governo Lula, com um desenho ainda mais agressivo que o próprio projeto de Paulo Guedes.
No plano da Reforma do próprio Estado, trata-se não só de torná-lo menos regulador ou intervencionista, mas sim de fazer do próprio Estado um manancial de oportunidades de investimentos e negócios para o capital selvagem. Tudo aquilo que pudesse representar uma defesa do cidadão e da sociedade contra a sanha do capital, se volta contra quem deveria defender.
Os Princípios Norteadores do Estado
Essa característica se reflete nos próprios princípios do Estado, que seriam incluídos no artigo 37 da Constituição. Além dos princípios já citados acrescentam-se na Reforma os princípios de transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública, subsidiariedade e imparcialidade.
Os princípios de transparência e inovação já estão presentes em processos de mudança recente do Estado, não sendo identificável no corpo da proposta alguma outra alteração mais significativa. Já os princípios de responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança (pública) e imparcialidade mostram a orientação privatista da Reforma, pois são princípios que se adequam melhor à administração privada e não pública. São princípios frequentemente usados para orientar a administração de empresas privadas, a chamada “boa governança”. Mas existe um princípio, que juntamente com os outros “novos”’ pode explicitar claramente o que se pretende: a subsidiariedade.
A aplicação deste princípio significa que o próprio Estado passa a ser considerado uma atividade “subsidiária” à da iniciativa privada. É uma completa inversão dos papéis de Estado e iniciativa privada e não apenas um maior ou menor caráter “liberal” deste Estado.
Leia parte 2 dessa análise no Diário da Causa Operária de 16/02/2024, sexta-feira.