O pronome é, em linhas gerais, uma palavra cuja função é substituir substantivos no uso da língua; além disso, os pronomes também têm a função de marcar as pessoas do discurso.
Quando o discurso é enunciado, há nele a voz responsável pela fala; o dono dessa voz se chama enunciador, quem, exatamente, fala com o enunciatário do discurso por meio do enunciado. Na canção “Biscate”, de Chico Buarque, há bons exemplos das presenças do enunciador marcadas no enunciado:
“Vivo de biscate e queres que eu te sustente / Se eu ganhar algum vendendo mate / Dou-te uns badulaques de repente / Andas de pareô, eu sigo inadimplente”
A canção é feita em forma de diálogo; nela, durante a típica briga de casal, nessa primeira estrofe é o homem quem faz as defesas e acusações. Ele está marcado no pronome “eu”, o “enunciador”, e sua companheira, o “enunciatário” da fala, está marcada no pronome “te”. Note-se, ainda, que a conjugação dos verbos concorda com o enunciador, estando todos eles na primeira pessoa do singular, feito “vivo”, “sustente”, “dou” e “sigo”; ou concorda com o enunciatário, quando o verbo está conjugado na segunda pessoa do singular, feito “andas”. Dessa maneira, enunciador e enunciatário definem, respectivamente, o “eu” e o “tu”, quem são as pessoas de um tipo determinado de enunciação; nela, “eu” e “tu” são personagens do enunciado e não devem ser confundidos com as pessoas reais envolvidas em todo ato de fala.
Quando Machado de Assis escreve, em suas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”, o enunciador é a personagem Brás Cubas e não, Machado de Assis. Processo semelhante se dá na conversação, pois, no seu decorrer, representam-se papéis sociais e, enquanto personagens dos próprios discursos, dizemos “eu”.
Outro modo de enunciar é não marcar o enunciador e o enunciatário na formulação do enunciado; neste trecho do conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato, a enunciação é assim:
“Negrinha era uma pobre orfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigario, dando audiencias, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostolicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Otima, a dona Inácia.”
(a falta de acentuação é exigência do próprio Monteiro Lobato)
No texto há, evidentemente, o enunciador responsável pela enunciação, no entanto, ele não está marcado nos pronomes, uma vez que o discurso está construído em terceira pessoa; não se fala nem de “eu” nem de “tu”, mas de “ele” ou “ela”. Tanto “Negrinha” quanto “Dona Inácia” são terceiras pessoas, podendo ser substituídas pelo pronome “ela”, com os verbos referentes a suas ações e estados conjugados na terceira pessoa do singular.
Há, portanto, dois tipos básicos de enunciação: (1) em primeira pessoa, construída com os pronomes “eu” e “tu”, com os quais se marcam, respectivamente, o enunciador e o enunciatário; e (2) em terceira pessoa, construída sobre os pronomes “ele” ou “ela”, quando não são marcados o enunciador nem o enunciatário.