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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

O melhor filme de todos os tempos

Filme de Chantal Akerman é uma reflexão sobre rotina e trabalho no cotidiano capitalista

A chamada cultura identitária ganhou mais um capítulo na semana passada com a revelação de uma lista “dos 100 melhores filmes de todos os tempos” feita pelo British Film Institute (BFI) em parceria com a revista britânica Sight and Sound. O BFI é uma agência do governo britânico que zela pela preservação, financiamento e fomento ao cinema no Reino Unido.

O nicho cinematográfico, associado ao rótulo de mercado “cinema de arte”, vive da criação de valor a partir da arbitrária seleção de cânones embalados pela mistificação da figura do diretor de cinema, algo estabelecido desde que François Truffaut publicou um pequeno texto chamado “Uma certa tendência do cinema francês” na revista Cahiers do Cinema, em 1954.

A questão aqui é contraditória. De um lado, temos sim uma coleção enorme de obras cinematográficas que são expressões artisticas de imensa qualidade. De outro, a utilização política dessas obras para enaltecer o gênio de certos estados nacionais e delimitar o que é civilização de acordo com a imposição cultural de plantão.

A criação de cânones é realizada a partir de alguns rituais que seguem uma ordem pré-estabelecida. Primeiro temos os festivais de cinema que, de um lado, permitem a circulação de obras menos comerciais, mas que representam também um recorte sobre o que deve ser assistido ou não e o que deve ser considerado arte ou não.

Com os festivais, temos, em segundo, a participação da imprensa especializada, ou da crítica de cinema.  Esta tem a função de promover e ressaltar a importância do cânone, ratificando aqueles que merecem maior atenção a partir de resenhas que são publicadas nas editorias de cultura da mesma imprensa que faz da sua cobertura de política uma propaganda do ponto de vista da classe dominante.

Por fim, temos as listas, como essa recente do BFI, que mistura um pouco de tudo para dar autoridade à eleição, cujo resultado  se espalha como pólvora acesa por todos os continentes e estabelece qual arte deve ser consumida pelos cinéfilos, ou seja, pelo gosto civilizado.

A lista publicada na semana passada é a expressão máxima desse conceito. O melhor filme de todos os tempos, eleito por mais de 1.600 críticos, segundo o BFI, foi Jeanne Dielman  (Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles), dirigido em 1975 pela cineasta belga Chantal Akerman, na época com 25 anos de idade.

Se estivesse viva, Chantal Akerman, que faleceu em 2015, talvez fosse contra a escolha. Não que seu filme não seja bom (falaremos sobre ele mais adiante), mas porque os motivos civilizatórios para esta canonização acabam por esconder suas virtudes. Chantal era mulher, judia e lésbica. Sua mãe sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz, lugar onde viu toda sua família perecer. Esses são os reais motivos da escolha.

É evidente que o “melhor filme de todos os tempos” serve ao propósito de imposição dos valores ditos civilizatórios que,  neste caso, atendem explicitamente à agenda identitária que a Europa e os Estados Unidos vêm propagandeando e que serve de máscara palatável aos seus constantes ataques à soberania de qualquer país que lhes faça o mínimo de oposição.

Trata-se da apropriação de uma criação artística de 1975 para fins únicos de propaganda de guerra, muito parecida com a que foi feita este ano com o Festival de Cannes. O identitarismo é como um slogan, uma falácia retórica que justifica e esconde os atos imorais desses mesmos países e de suas políticas de expropriação, de exploração e de terror fascista.

Justifica perfeitamente, neste momento, a guerra no próprio solo europeu e os ataques incessantes a países como Rússia, Irã e China, considerados não civilizados, machistas, homofóbicos, ditaduras extremistas e fundamentalistas. O Brasil corre o mesmo risco, não tenhamos dúvidas. O identitarismo é a maquiagem perfeita e ajuda a manter o que há de mais reacionário atualmente.

Vale a pena assistir a Jeanne Dielman?

Apesar da apropriação política da figura de sua diretora, o filme merece  ser visto. Podemos precebe-lo como um retrato da subjetividade da pequena burguesia europeia. No enredo, Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é uma viúva, dona de casa, que vive uma rotina de cuidar do filho, já adulto, e do pequeno apartamento onde eles vivem em Bruxelas. Com mais de três horas de duração, a película nos convida a acompanhar três dias deste cotidiano. Tarefa que pode ser difícil para aqueles em busca de muita ação.

No campo da forma, Akerman fez um filme descritivo, ao invés de narrativo, visto que a ênfase é mostrar a realização das tarefas com esmero, eficiência, técnica e no tempo exato. É uma representação da lógica do trabalho, aplicada ao ambiente doméstico. Entre as tarefas estão descascar batatas, lavar louça, arrumar as camas e receber homens, como prostituta, no final da tarde, o que parece ser a fonte de renda da protagonista.

Parentesco com a pós-modernidade

Essa parece ser uma representação de um conceito que se tornou muito popular entre as feministas francesas dos anos 1970 chamado de divisão sexual do trabalho, formulado a partir do conceito de divisão social do trabalho de Marx. Jeanne é representada como uma trabalhadora pequeno-burguesa alienada, que faz com esmero as tarefas a ela são destinadas por causa do seu sexo.

Neste caso, o filme pode ser visto  atualmente como um documento sobre como a cineasta utilizou as filosofias sociais que circulavam nos anos 1970, com forte influência da psicanálise, para fazer seu filme. É da mesma época, por exemplo, um texto que ficou famoso “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, da teórica americana Laura Mulvey, um exemplo do ambiente intelectual do pós-1968, muito influenciado pela crítica francesa encabeçada por Foucault, Deleuse e Guattari. Hoje em dia, fortemente criticados pela crítica materialista.

Surrealismo e digressão

No teatro e no cinema, podemos incluir Jeanne em uma lista de personagens femininas que a antecederam como Agnés, a filha do deus Indra, da peça O Sonho (1901), do dramaturgo suéco August Strindberg (este texto foi adaptado por Ingmar Bergman em 1963 para a TV e está disponível no YouTube com legendas em inglês). Há um diálogo entre Agnès e um advogado sobre dever e lazer que é o retrato de Jeanne. Eis um trecho:

Advogado: Agora você já viu quase tudo, mas não passou pelo pior.
Inês: O que pode ser isso?
Advogado: Repetição. Repita o padrão. Volte. Aprenda a lição novamente. Volte aos seus deveres.
Inês: O que é dever?
Advogado: É tudo o que você evita. Tudo o que você não quer e deve fazer. É abster-se. Renunciar. Deixar para trás. Tudo que é desagradável, repulsivo, tedioso.
Inês: Não há deveres agradáveis?
Advogado: Eles se tornam agradáveis quando você termina.
Inês: Quando já não existem. O dever é sempre desagradável. O que é agradável?
Advogado: O pecado é agradável.
Inês: Pecado?
Advogado: Que tem que ser punido, sim.

Do mesmo Ingmar Bergman, temos Monica e o Desejo (1953), sobre uma jovem da classe operária que não se adapta à vida doméstica. Além desse, temos a A Bela da Tarde, de Luiz Buñuel (1967), sobre uma esposa de classe média que trai o marido médico em um bordel. Jeanne é sucedida pela força explícita da Ninfomaníaca de Lars von Trier (2013), uma mulher que rompe com todas as barreiras sociais impostas a ela, principalmente aquelas morais ligadas ao politicamente correto pseudo-progressista de nossos tempos.

Em comum entre essas personagens, uma ligação com o surrealismo (claro, menos Monica). No caso, Akerman utiliza pitadas surrealistas em meio a uma encenação que busca ser naturalista, criando contradições e estranhamentos sutis.

O realismo surge nas cenas descritivas da rotina repetitiva da personagem, como o ato de cozinhar, acordar o filho, fazer o café, tomar banho e limpar a banheira. Acompanhamos essas tarefas como se fossem um ritual, realizadas sempre na mesma ordem e nos mesmos horários. Na fonte, também estão os romances do início do século XX, como os de Marcel Proust, e suas descrições (ou digressões) da subjetivida burguesa.

No geral, são romances desprovidos de ação, aventuras ou encantamentos, próprios de um mundo burguês previsível, característica que os romancistas modernos do início do século identificaram na nova classe dominante, O dramaturgo Samuel Beckett fala do tédio como marca do romance de Proust: “o pêndulo oscila entre estes dois termos: Sofrimento – que abre uma janela para o real e é a condição principal da experiência artística, e Tédio – com seu exército de ministros higiênicos e aprumados, o Tédio que deve ser considerado como o mais tolerável, já que é o mais duradouro de todos os males humanos”.

O teórico Franco Moretti fala do romance burguês como um romance de enchimentos: “(…) pequenas coisas se tornam significantes sem deixar de ser “pequenas”, tornam-se narrativas sem deixar de ser cotidiano. (…) Os enchimentos racionalizam o universo do romance, transformando-o em um mundo com poucas surpresas, pouquíssimas aventuras e absolutamente sem milagres”.

Essa é a experiência que percebemos ao assistir o cotidiano de Jeanne Dielman.

Já o surrealismo se embrenha nesta rotina, desafiando-a e desafiando quem assiste, rompendo com a aparente ordem imaculada desta dona de casa. Ele acontece nos encontros sexuais comerciais aos quais ela se sujeita, nas conversas edipianas com o filho e no apartamento decorado como se fosse 1944, ainda na Guerra, e não 1975, como se houvesse parado no tempo. Até mesmo a marcação temporal parece carecer de certa verossimilhança, como se estivéssemos lidando com um sonho.

Essa oscilação entre a descrição detalhada do prosaico, a ausência da ação que no drama coloca os personagens em movimento, e a intrusão de elementos situacionais, diálogos, músicas e sons, quebra com a naturalização do que está sendo mostrado.

Os sons são um caso a parte. Colocando Jeanne sozinha no apartamento a maior parte do tempo, o filme se desenrola quase como se fosse mudo, dependente das expressões faciais da ótima atriz Delphine Seyrig. Os únicos sons são dos objetos, dos passos, do ascender e apagar de interruptores de luz, das panelas, da abertura de janelas e de portas. São os sons do apartamento que formam uma espécie de sinfonia dos objetos comuns.

A ação inesperada e surpreendente acontece somente nos minutos finais, mais um elemento surrealista, que não descreverei para não estragar a experiência de quem vai assistir ao filme. É como se Jeanne finalmente decidisse deixar sua cápsula do tempo, que parecia hermeticamente fechada , e, com um gesto trágico, um tipo de sacrifício, partisse para um nova ordem temporal e espacial, que gera movimento e, portanto, mudança.

Na forma, trata-se evidentemente de romper com o exercício descritivo hipnotizante, sustentado com  variações, para entrar no jogo do drama, porém destruindo de maneira irremediável o reino  pequeno-burguês congelado desta matriarca ambígua e autoritária.

A lógica cultura do capitalismo tardio

Diante dessas contradições, como considerar a premiação que certamente fará com que muito gente procure e descubra Jeanne Dielman? Como apontado no início desse texto, o problema está na lista, que é uma peça de propaganda política de um estado reacionário em guerra. O filme e sua diretora apenas servem ao propósito atual de imposição de valores considerados civilizados pelo imperialisto. É a lógica cultural do capitalismo tardio, como diz o crítico norte-americano Fredric Jameson.

Na semana passada, por exemplo, fiz um texto sobre um filme excepcional, chamado Relações de Classe, dirigido pelos cineastas franceses Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Por que esse filme não esta em primeiro lugar na lista do BFI? Temos inclusive uma diretora! Talvez seja pelo fato de que seus criadores tenham sido socialistas declaradamente revolucionários.

Em uma entrevista sobre este filme, concedida em 1985, Straub fez uma crítica à cultura cinéfila, que considerava superficial. Ele falou da importância de D.W. Griffith para a criação da linguagem cinematográfica que conhecemos nos dias de hoje em filmes como O Nascimento de uma Nação  (1915) e Intolerância  (1916). Por que esses filmes não ocupam o primeiro lugar? Talvez porque hoje em dia eles estejam passando pelo escrutínio civilizatório, pela condenação ideológica e pela cultura do cancelamento. Mas, se ficarmos no campo progressista, onde encaixar os filmes de Charles Chaplin? E os de Serguei Eisenstein? A expressão “melhor filme de todos os tempos”  revela um desconhecimento muito grande da história do cinema.

Esse texto sobre Jeanne Dielman  apenas arranha sua complexidade narrativa. No entanto, fica evidente que sua origem está no teatro, na literatura e no cinema do século XX. Ele não é fruto do mero acaso ou de um lampejo de genialidade. Akerman com certeza conhecia algumas dessas obras e técnicas, provavelmente todas e muitas mais. O mérito da diretora foi o de trabalhar com esses materiais e fazer um filme muito criativo e lúcido no momento histórico de sua produção.

Jeanne Dielman pode ser assistido no serviço de streaming Filmicca.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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