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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

O Manifesto Surrealista completa 100 anos

As lições do surrealismo ainda são necessárias na nossa conjuntura histórica

Há 100 anos, em um mês de outubro, André Breton lançou as bases do surrealismo ao publicar o primeiro manifesto do movimento. O texto antecede em 15 anos o Manifesto por uma Arte Independente, escrito pelo próprio Breton e por Leon Trotsky, como uma reação ao realismo socialista implantado pela burocracia de Stalin na União Soviética.

Entre os dois textos, temos  um intervalo entre as duas grandes guerras imperialistas do século XX e uma das piores crises do capitalismo, a de 1929, que chegou a levar capitalistas ao suicídio e inspirou muitos filmes.

O texto de 1924, no entanto, mostra as bases de uma arte que, ao contrário do que dizem, não estava apenas interessada nos sonhos e no inconsciente, mas estava firme na realidade e no materialismo. Essas sãos as primeiras palavras do texto:

Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) 

O surrealismo quer entender como o homem, esse sonhador definitivo, aceitou trocar a poesia pelo trabalho estéril e, a cada dia, é mais desgostoso com seu destino sem entender porque. Mais do que isso, esse homem acredita que a decisão foi sua.

E continua:

Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz. 

As leis de uma utilidade arbitrária. Quem já esteve dias e dias em um trabalho sem sentido, que é pura exploração, sabe exatamente o que significam essas leis da utilidade fabricada. A desimportância das coisas importantes para que o capital continue a crescer.

Desde o começo, o surrealismo surgiu para ser uma forma de arte de oposição à utilidade arbitrária da consciência burguesa, para afrontar essa consciência com uma arte que questiona essa falsa noção do real, ou seja, para libertar os seres humanos desse engodo.

Uma cena de Um cão andaluz, de Luis Buñuel, realizado cinco anos depois, parece resumir, com o poder de sua imagem, essas ideias. Um homem arrasta, em um quarto, dois pianos. Em cima desses pianos, burros mortos, abaixo, pastores. O homem arrasta a cultura, a religião e o trabalho cercado pelos símbolos de sua civilização, sem questionar os motivos.

E aqui estamos nós, 100 anos após a escrita do Manifesto, enfrentando as mesmas questões e, aparentemente, às vésperas de mais uma guerra imperialista. 

As vanguardas modernistas, em especial o surrealismo, deixaram para nós um legado que é incontestável. Precisamos voltar às vanguardas, – uma frase que parece um paradoxo em si -, para pensar novamente no futuro.

Por uma arte que não seja, no fundo, apenas o reflexo da utilidade fabricada pela consciência de classe da burguesia.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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