Há quase quarenta anos, em 16 de fevereiro de 1985, o Xeique Ibrahim al-Amin lançou o manifesto do Hesbolá, declarando expressamente que os militantes e combatentes do Partido de Alá não descansariam até libertar o Líbano e todo o mundo muçulmano do domínio do imperialismo e da opressão do sionismo.
Muito se discute sobre quando exatamente o Hesbolá teria sido fundado. Há historiadores que apontam o ano de 1982; outros, por sua vez, dizem que o partido só teria sido edificado ao final de 1985, com a fusão de várias milícias populares de ideologia xiita. Independente disso, o que é seguro dizer é que o Hesbolá surgiu da própria luta do povo libanês e palestino contra o sionismo e o imperialismo, e que o manifesto de 1985 foi um ponto de virada na história do partido, pois foi por meio dele que a sua ideologia e seus objetivos anti-imperialistas e antissionistas foram expressamente declarados.
Em 1985, a conjuntura política no Líbano ainda era a da Guerra Civil, que havia começado em 13 de abril de 1975, e terminaria (formalmente, isto é) apenas em 13 de outubro de 1990. Aliás, como toda guerra “civil” na época do imperialismo, a guerra no Líbano era, na verdade, uma guerra de agressão impulsionada pelo imperialismo norte-americano, francês e também por “Israel”. O objetivo dessa guerra era tanto sufocar o crescente movimento nacionalista que existia em meio ao povo libanês, quanto esmagar a resistência palestina.
Relembrando o que já foi publicado neste Diário, entre setembro de 1970 e julho de 1971, o Fatá (partido que liderava a resistência palestina) e a OLP (coalizão das organizações da resistência) foram expulsos da Jordânia pela monarquia reacionária do Rei Hussein bin Talal, a mando do imperialismo; evento que ficou conhecido como Setembro Negro, e que forçou a resistência a se estabelecer no Líbano:
Setembro Negro: quando imperialismo expulsou a OLP para o Líbano
Com o objetivo de destruir a resistência palestina de uma vez por todas, o imperialismo e “Israel” deram início à Guerra “Civil” do Líbano, utilizando-se das milícias fascistas dos cristãos maronitas para atacar os palestinos e libaneses. Milhares foram assassinados e inúmeros episódios da mais abjeta violência fascista, como, por exemplo, os massacres de Sabra e Chatila e o Cerco a Beirute, ocorreram:
Essa agressão forçou o povo libanês a reagir, organizando sua própria defesa. O Hesbolá se desenvolveu nesse processo, a partir do ano de 1981. E, quando chega 1985, ano da publicação de seu manifesto, o partido já era o resultado de uma ampla luta popular contra o imperialismo e o sionismo, luta esta impulsionada pela situação revolucionária no Irã e que só foi possível de ser levada adiante com união de diversas organizações de luta do povo libanês, tais como a Organização Jiade Islâmica, a Organização dos Oprimidos na Terra e a Organização da Justiça Revolucionária.
Tudo isto ficou expresso no manifesto, como será visto a seguir.
Apesar de ter sido escrito há quase quatro décadas, o manifesto é de uma clareza e atualidade políticas impressionante. Nele, o Hesbolá começa explicando qual é a identidade do partido. Está escrito o seguinte:
“Nós somos os filhos da umma (comunidade muçulmana) – o partido de Deus (Hizb Allah), cuja vanguarda foi feita vitoriosa por Deus no Irã. Lá, a vanguarda conseguiu estabelecer as bases de um estado muçulmano que desempenha um papel central no mundo. Nós obedecemos às ordens de um líder, sábio e justo, o nosso tutor e faqih (jurista) que preenche todas as condições necessárias: Ruhollah Musawi Khomeini.”
A primeiro momento pode parecer algo confessional, de natureza puramente religiosa. Mas por trás da ideologia, há todo um conteúdo político que expressa a luta dos oprimidos. Primeiramente, está escrito que os membros do Hesbolá são filhos da comunidade muçulmana. Ora, estão declarando expressamente a união do povo árabe e muçulmano, que, naquela época, significa um povo oprimido pelo imperialismo e “Israel”. Então, já de início o Hesbolá se identifica com a união dos povos oprimidos daquela região.
Logo em seguida, fala sobre a Revolução Iraniana e seu líder, o aiatolá Khomeini. Apesar dos termos religiosos, é uma declaração de que o Hesbolá é um partido que segue o exemplo dos revolucionários iranianos. Isto é, que irá lutar contra os Estados Unidos e “Israel”, para expulsá-los do Líbano, assim como foi feito no Irã em 1979.
No parágrafo seguinte, a solidariedade do Hesbolá com todos os árabes e muçulmanos oprimidos fica ainda mais clara:
“Nós somos uma umma ligada aos muçulmanos do mundo todo […] Por isso, qualquer coisa que afeta ou atinge os muçulmanos no Afeganistão, Iraque, Filipinas e em outros lugares repercute por toda a umma muçulmana, da qual somos uma parte integral.”
E, finalizando a parte do manifesto que fala sobre a identidade do partido, fica claro que se trata de uma organização armada vinculada às massas e que, por isso, dá ao seu aparato militar uma enorme importância:
“Ninguém pode imaginar a importância do nosso potencial militar, pois nosso aparato militar não está separado de nosso tecido social geral. Cada um de nós é um soldado combatente.”
Em que pese o Hesbolá não fosse (e continue sem ser) adepto do marxismo, a experiência prática mostrou para os seus fundadores a necessidade de que a luta armada contra o imperialismo seja apoiada pelo povo, para ser bem sucedida. É justamente o que diz a teoria marxista sobre a luta armada.
Uma vez esclarecida a sua identidade, o Partido de Alá explica qual é a sua luta. E é a partir daí que se constata que o aspecto religioso e ideológico do Hesbolá não é o fundamental. O fundamental é que ele é um partido que luta contra o imperialismo pela libertação nacional de seu povo.
Nesse sentido, começa a seção “Nossa Luta”, denunciando que os Estados Unidos tentam, a todo momento, convencer as pessoas de que a luta do povo libanês e dos oprimidos é terrorismo:
“Os EUA tentaram, por meio de seus agentes locais, persuadir as pessoas de que aqueles que esmagaram sua arrogância no Líbano e frustraram sua conspiração contra os oprimidos (mustad’afin) não passavam de um bando de terroristas fanáticos”. Apesar dessa campanha difamatória, deixa claro que “nossa determinação de lutar contra os EUA é sólida”.
Em outras palavras, um verdadeiro espírito revolucionário, sem se importar para a campanha difamatória da imprensa imperialista.
O manifesto segue, então, denunciando os crimes do imperialismo e do sionismo contra o Líbano e a Palestina:
“Os Estados Unidos, seus aliados do Pacto do Atlântico e a entidade sionista na Terra Santa da Palestina nos atacaram e continuam a fazê-lo sem trégua.
[…]
Eles invadiram nosso país, destruíram nossas aldeias, degolaram nossas crianças, violaram nossos santuários e nomearam mestres sobre nosso povo que cometeram os piores massacres contra nossa umma. Eles não cessam de apoiar esses aliados de Israel e não nos permitem decidir nosso futuro de acordo com nossos próprios desejos.”
A última frase deixa claro que o Hesbolá luta pela libertação nacional do povo libanês. Já ao falar em “aliados de ‘Israel’”, o partido se refere às milícias fascistas dos cristãos maronitas, o que ficará expresso no próximo trecho, quando o manifesto faz referência ao Massacre de Sabra e Chatila, um dos mais horrendos que o mundo já viu:
“Em uma única noite, os israelenses e os falangistas executaram milhares de nossos filhos, mulheres e crianças em Sabra e Chatila.”
Relembre este evento trágico na história do povo libanês e palestino:
Após citar o massacre, o Hesbolá denuncia tanto a natureza imperialista das organizações humanitárias mundiais, que sequer protestaram/impediram que milhares fossem mortos, quanto a cumplicidade dos países imperialista com “Israel”, que foi o país diretamente envolvido no massacre (do ponto de vista militar). Por sua vez, no que tange o aspecto diplomático, denuncia a capitulação da OLP e também Philip Habib, diplomata norte-americano que negociou que a organização saísse “pacificamente” de Beirute, em 1982, deixando o caminho livre para os maronitas assassinarem milhares no campo de refugiados de Sabra e Chatila:
“Nenhuma organização internacional protestou ou denunciou de maneira eficaz esse massacre feroz, perpetrado com o acordo tácito dos aliados europeus da América, que haviam recuado alguns dias, talvez até algumas horas antes, dos campos palestinos. Os derrotistas libaneses aceitaram colocar os campos sob a proteção daquele astuto raposo, o enviado dos EUA Philip Habib.”
Segue então denunciando que “Israel” sempre esteve e continua por trás dos cristãos maronitas (assim como os EUA). De forma que a única alternativa do povo libanês é lutar:
“Não temos alternativa senão confrontar a agressão por meio do sacrifício. A coordenação entre os Falangistas e Israel continua e se desenvolve. Cem mil vítimas – este é o balanço aproximado dos crimes cometidos por eles e pelos EUA contra nós.
[…]
A ocupação sionista então lançou sua invasão usurpadora do Líbano em plena e aberta conluio com as Falanges. Estas condenaram todas as tentativas de resistir às forças invasoras. Eles participaram na implementação de certos planos israelenses para realizar seu sonho libanês e aceitaram todas as solicitações de Israel para obter poder.”
Esclarecendo, “Falanges” refere-se ao braço armado do Partido Cataebe, o maior dentre os cristãos maronitas. Releia matéria já publicada neste Diário, sobre o que esses carniceiros fizeram em Tel al-Zaatar:
Milícias fascistas apoiadas por “Israel” matam mais de 3 mil
Feita a denúncia, o Hesbolá deixa claro em seu manifesto que o povo libanês não poderia mais aguentar o imperialismo, o sionismo e seus lacaios maronitas, sendo necessário travar uma guerra de resistência:
“Nosso povo não pôde mais suportar traições. Decidiu opor-se à infidelidade – seja francesa, americana ou israelense – atacando seus quartéis-generais e lançando uma verdadeira guerra de resistência contra as forças de ocupação.”
A partir daí, esclarecida qual é a luta do Hesbolá (e do povo libanês), o partido expõe seus objetivos. Já no início do capítulo “Nossos Objetivos”, declara que os “maiores inimigos no Oriente Médio” são “os Falangistas, ‘Israel’, França e os Estados Unidos”, e que os “filhos da nossa umma”, isto é, o povo muçulmano oprimido em união, estão em um “estado crescente de confronto” com esses inimigos, e que o confronto continuará se acirrando até “a concretização dos três objetivos seguintes”:
“(a) expulsar definitivamente os americanos, os franceses e seus aliados do Líbano, encerrando qualquer entidade colonialista em nossa terra;
(b) submeter as Falanges a um poder justo e levá-las todas à justiça pelos crimes que cometeram contra muçulmanos e cristãos;
(c) permitir a todos os filhos de nosso povo determinar seu futuro e escolher, com toda a liberdade, a forma de governo que desejam. Convidamos todos eles a escolher a opção de governo islâmico, que sozinho é capaz de garantir justiça e liberdade para todos. Apenas um regime islâmico pode deter qualquer tentativa adicional de infiltração imperialista em nosso país.”
Acima, fica claro a natureza anti-imperialista do manifesto do Hesbolá. A menção a um regime islâmico deve ser considerada como algo secundário. Afinal, o islamismo se tornou um veículo ideológico para a luta de libertação nacional do povo oprimido do Oriente Médio, pois o imperialismo utilizou-se de regimes laicos para oprimir aquele povo e, ao mesmo tempo, o movimento dito “comunista”, que era laico, não foi capaz de lutar contra o imperialismo (isto quando não se associou com o imperialismo para sufocar os movimentos de libertação nacional).
E então, confirmando que sua luta faz parte da luta dos povos oprimidos contra o imperialismo, o Hesbolá declara que “quanto aos nossos amigos, eles são todos os povos oprimidos do mundo. Nossos amigos também são aqueles que combatem nossos inimigos e que nos defendem de seu mal”.
Faz também questão de deixar claro que diferenças secundárias devem ser superadas, em prol da união para derrotar esses inimigos (Estados Unidos, França, “Israel” e os Falangistas):
“Mesmo que tenhamos, amigos, pontos de vista bastante diferentes quanto aos meios da luta e aos níveis em que ela deve ser realizada, devemos superar essas pequenas divergências e consolidar a cooperação entre nós em vista do grande plano.”
O ponto que se segue é um dos mais interessantes do manifesto, porque deixa claro, sem margem para dúvidas, que a ideologia religiosa do Hesbolá (o islamismo) não é um obstáculo para sua luta em defesa dos povos oprimidos de todo o mundo, mas um veículo. No manifesto, o partido deixa claro que, apesar de aderir à mensagem do Islã, não a querem impor a ninguém. O que querem é trazer justiça, paz e tranquilidade para o mundo:
“Nós somos uma umma que adere à mensagem do Islã. Queremos que todos os oprimidos possam estudar a mensagem divina para trazer justiça, paz e tranquilidade ao mundo. É por isso que não queremos impor o Islã a ninguém, assim como não queremos que outros imponham suas convicções e seus sistemas políticos sobre nós.”
Isto deveria servir de lição para a esquerda pequeno-burguesa, que se recusa a apoiar organizações armadas revolucionárias do Oriente Médio, que lutam contra o imperialismo e contra “Israel”, simplesmente porque elas são muçulmanas. Esses setores não apoiaram o Talibã quando este expulsou os EUA do Afeganistão e não apoiam a luta armada do Hamas contra “Israel”. Ao fim, sob a justificativa de que o islamismo seria retrógrado, capitulam perante o imperialismo.
Contudo, conforme pode ser visto pelo manifesto do Hesbolá (e certamente o mesmo ocorre com várias outras organizações revolucionárias islâmicas), o islamismo é um fator secundário, sendo que o principal é a luta de um povo oprimido contra o imperialismo e o sionismo.
Prosseguindo, o Hesbolá declara expressamente em seu manifesto a sua natureza revolucionária, expondo que manter a luta dentre dos limites estabelecidos pelo imperialismo “não satisfaz os interesses das massas”:
“Consideramos que toda oposição no Líbano expressa em nome da reforma só pode, em última instância, beneficiar o sistema atual. Toda essa oposição que opera dentro do quadro da conservação e salvaguarda da constituição atual, sem exigir mudanças no nível da própria fundação do regime, é, portanto, uma oposição puramente formal que não pode satisfazer os interesses das massas oprimidas. Da mesma forma, qualquer oposição que confronta o regime atual, mas dentro dos limites fixados por ele, é uma oposição ilusória […] Não nos importamos com a criação desta ou daquela coalizão governamental ou com a participação desta ou daquela personalidade política em algum cargo ministerial, que é apenas parte deste regime injusto.”
E finaliza “com chave de ouro”, para utilizar de uma expressão popular, explicando a “Necessidade da Destruição de ‘Israel’”. E por que isto seria necessário? O Hesbolá deixa expresso que “Israel” é a ponta de lança dos EUA para oprimir o mundo islâmico (isto é, oprimir os povos oprimidos do Oriente Médio), fazendo menção à Palestina, deixando claro que o Estado sionista é algo nefasto desde as suas origens, por ter sido criado sobre o roubo das terras dos palestinos:
“Nós vemos em Israel a vanguarda dos Estados Unidos em nosso mundo islâmico. É o inimigo odiado que deve ser combatido até que os odiados obtenham o que merecem. Este inimigo é o maior perigo para as nossas gerações futuras e para o destino de nossas terras, especialmente porque glorifica as ideias de assentamento e expansão, iniciadas na Palestina, e ansiando pela extensão do Grande Israel, desde o Eufrates até o Nilo.
Nossa premissa principal em nossa luta contra Israel afirma que a entidade sionista é agressiva desde sua origem e construída em terras arrancadas de seus proprietários, às custas dos direitos do povo muçulmano. Portanto, nossa luta só terminará quando essa entidade for aniquilada. Não reconhecemos nenhum tratado com ela, nenhum cessar-fogo e nenhum acordo de paz, seja separado ou consolidado.”
Consequentemente, condena qualquer acordo que leve à capitulação perante “Israel”, especialmente aqueles que levem ao reconhecimento da entidade sionista como um Estado legítimo:
“Nós condenamos vigorosamente todos os planos de negociação com Israel e consideramos todos os negociadores como inimigos, pois tal negociação não passa de reconhecimento da legitimidade da ocupação sionista da Palestina. Portanto, nos opomos e rejeitamos os Acordos de Camp David, as propostas do Rei Fahd, o plano de Fez e Reagan, as propostas de Brejnev e da França-Egito, e todos os outros programas que incluem o reconhecimento (mesmo que implícito) da entidade sionista.”
Assim, vê-se que já na década de 1980, os líderes e militantes do Hesbolá possuíam uma noção clara do caminho a ser seguido para não sucumbir diante do imperialismo e de “Israel”. Não é coincidência que jamais capitularam perante os sionistas e os Estado Unidos, muito menos é coincidência o fato de que o Partido de Alá é quem mais presta auxílio à resistência palestina na sua heroica luta contra o Estado nazista de “Israel” desde o dia 7 de outubro.
E é justamente por manter uma política anti-imperialista e antissionista consequente que o partido só cresceu e se fortaleceu perante a população libanesa e do Oriente Médio desde sua fundação, de forma que é uma das principais organizações que estará na linha de frente quando o Estado de “Israel” for destruído e o imperialismo for expulso de uma vez por todas do Médio Oriente.