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Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

Nova rota da seda: o caminho se faz no caminhar

"O Brasil precisa de participar da iniciativa Cinturão e Rota"

A trajetória do governo Lula de negar as perspectivas levantadas em sua campanha eleitoral no sentido da reconstrução nacional e da volta ao desenvolvimento do país avançou tremendamente nestes dias. O Brasil estará definitivamente condenado a ser um mero exportador de matérias-primas “in natura” se continuar nesta rota de políticas econômicas neoliberais centradas em intermináveis ajustes fiscais. De forma ainda confusa e cheia de idas e vindas, o governo Lula anunciou que não vai aderir ao projeto Cinturão e Rota da China, para “diversificar as fontes de investimento” e buscar “sinergias” com a China. A questão é que não existem fontes de investimento nos países da órbita imperialista. A decadência dos EUA é flagrante e o mesmo acontece na Europa, onde as notícias de recessão, fechamentos de fábricas e desemprego são frequentes. O que há é uma fome intensa nos países imperialistas em abocanhar os recursos naturais dos países da América Latina, como a generala Richardson não cansa de repetir em suas entrevistas. E sinergias com a China são possíveis, desde que o país faça parte do maior projeto mundial de investimentos já criado até agora. Isto já foi reconhecido até pelo Governo Milei da Argentina, que já deve ter se arrependido de não entrar no BRICS+.

O que é a “Nova Rota da Seda”?

As antigas Rotas da Seda se espalharam por grande parte do mundo milênios atrás. Elas começaram no século II a.C. e terminaram somente quando os europeus invadiram o comércio de especiarias no século XV. Mas as estradas significavam muito mais do que uma faixa geográfica. Eram instrumentos não apenas para comércio e escambo, mas também para uma transformação cultural enriquecida por intercâmbios e fluxos de línguas, religiões e civilizações que levou a um estilo de vida não individualista e não predatório. Essa experiência histórica enriquecedora nunca foi apagada da memória dos chineses.

Foi partindo dessa experiência histórica que, poucos meses depois de assumir a presidência da China, em setembro de 2013, Xi Jinping anunciou um plano que batizou como iniciativa do Cinturão e Rota, mais conhecido como a Nova Rota da Seda. A ideia era construir infraestrutura e cadeias de suprimentos que conectassem a China com o resto do mundo e que beneficiaria todos os países envolvidos, sem nenhuma ação unilateral da China de dominar esses países e muito menos se apossar de seus recursos.

Agora, mais de 10 anos depois, o projeto cresceu e contempla não apenas as Rotas da Seda terrestres e marítimas, mas inclui também as rotas digital, espacial, polar, da saúde e ambiental. Em suma, quase qualquer projeto de cooperação que a China empreenda com outro país hoje deve ser incluído como parte de seu vasto programa Cinturão e Rota.

Essa estratégia justifica que, no final de 2014, um ano após o anúncio desses projetos, fossem criados o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, voltado para a promoção do desenvolvimento econômico, e o Fundo da Nova Rota da Seda, destinado a financiar os imensos investimentos que estão sendo realizados em todo o mundo envolvendo usinas energéticas, estradas rodoviárias de longo trajeto, ferrovias onde trafegam os velozes trens-bala e todo tipo de infraestrutura dos países participantes.

Um projeto alternativo ao imperialismo: a China não é imperialista

É um programa que gerou, até agora, mais de um trilhão de dólares em investimentos e conta com a participação de mais de 150 países e 32 organizações internacionais. Na África, foram construídos mais de 6.000 quilômetros de ferrovias, mais de 10.000 quilômetros de estradas e vários grandes projetos de infraestrutura, como portos, aeroportos, usinas hidrelétricas, escolas e hospitais. E fora do continente africano, destacam-se obras importantes, como a ferrovia de alta velocidade que liga a China ao Laos; o corredor econômico de 3.000 quilômetros que atravessa o Paquistão e ligará o porto de Gwadar à região chinesa de Xinjiang por meio de uma rede de rodovias, ferrovias e oleodutos, e o porto de águas profundas de Hambantota, no Sri Lanka, um enclave de grande valor estratégico no tráfego marítimo internacional e a nova Rota da Seda marítima.

Em última análise, essas realizações que já fazem parte da experiência concreta de dezenas de países tornam evidente que a iniciativa Cinturão e Rota é a expressão mais eloquente do grande desafio de Pequim à ordem imperialista chefiada pelos EUA. Como resultado, a China não se considera mais uma “potência do status quo”, pois estaria influenciando abertamente a ordem econômica e política mundial de acordo com sua própria grande estratégia e com o estabelecimento de novas instituições de alcance mundial (como o já mencionado AIIB e o FRS) que desafiam os organismos internacionais existentes criados em Bretton Woods (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio – OMC).

Tentar confundir a importância histórica da iniciativa com um imaginário “imperialismo chinês” é obscurecer o caráter transformador de “Um Cinturão, Uma Rota”, especialmente o inegável impulso que ela acarreta no desenvolvimento econômico, social e cultural dos estados participantes do projeto. A evidência dos gigantescos investimentos em infraestrutura não sugere que a China esteja buscando expandir seu território nacional, nem implica o redesenho das fronteiras nacionais de outros países.

Um ponto-chave a entender é que o governo e as empresas chinesas, à medida que perseguem seus interesses e contribuem com seus conhecimentos para o desenvolvimento dos países, inevitavelmente respeitam os processos pré-existentes de reconfiguração espacial e fazem-no negociando politicamente com comunidades e governos locais. Na questão dos empréstimos concedidos, eles são de natureza concessional, vinculados a projetos específicos. Além disso, os juros cobrados são mais baixos em relação aos das instituições ocidentais, e já houve casos de perdão ou renegociação da dívida gerada. Diante dessa realidade, a iniciativa Cinturão e Rota não pode ser vista como uma imposição de uma intervenção chinesa.

Uma consideração importante acerca desta iniciativa não é apenas o apelo para moldar uma ordem mundial multipolar com outros valores, mas também para mitigar tensões e melhorar a confiança mútua com os países participantes, a fim de garantir um ambiente pacífico para o desenvolvimento a longo prazo da China e de todas as nações.

A dinâmica econômica chinesa e a iniciativa Cinturão e Rota

A economia chinesa, desde o final da década de 1990, mostrou uma diminuição do retorno dos investimentos, juntamente com uma maior geração de “excesso de capital” e superprodução. Os sinais óbvios de superacumulação indicaram uma conjuntura crítica para o capitalismo chinês: a acumulação e a expansão do capital sob os limites territoriais existentes do mercado doméstico não são mais sustentáveis. Nesse sentido, o Estado e diferentes representantes do capital chinês intensificaram seus esforços conjuntos desde a década de 1990 para promover a expansão para o exterior. A missão desta iniciativa é construir hiperconectividade em todo o espaço eurasiano e defender uma melhor integração comercial e financeira, com o objetivo de facilitar a operação das empresas privadas e estatais. A maioria das nações em desenvolvimento interpreta a Nova Rota da Seda não apenas como uma iniciativa de cooperação internacional que melhora a infraestrutura e a conectividade de comunicação, mas também voltada para revitalizar a cooperação Sul-Sul e gerar esforços conjuntos para promover uma estratégia mais equilibrada e equitativa do sistema multilateral.

O desequilíbrio e as desigualdades já existentes na ordem internacional comandada pelo imperialismo foram aprofundados com a grande mudança neoliberal implementada nas economias ocidentais a partir de 1979/80 por Reagan/Thatcher. De lá até 2007, o crescimento nas economias avançadas desacelerou significativamente em comparação com o boom do pós-guerra, enquanto a economia chinesa excedeu esse crescimento médio anual em quase quatro vezes. Também demonstrou sua superioridade em relação aos países em desenvolvimento e aos que compunham a antiga União Soviética que aplicaram o livro de receitas neoliberal do “Consenso de Washington”. A chave para esse sucesso foi a política de integração comercial que buscou promover as importações de “bens intermediários” que possibilitaram a expansão das “cadeias de valor” na Ásia (comércio intraindustrial). A eclosão da crise global em 2008 significou o fim desse ciclo e o início do reajuste do modelo chinês a essa situação, com a Nova Rota da Seda fazendo parte dessa resposta.

Ao optar por aprofundar a integração nos mercados mundiais por meio de projetos como os mencionados, a China fica mais exposta às crescentes agressões geopolíticas do decadente império norte-americano e seus aliados incondicionais, mas também às contradições geradas por seus projetos, além de promessas e bons votos. Em tempos de crise, esse tipo de iniciativa permite que os investimentos estatais e o capital privado superem certos limites particulares e concretos (incluindo aqueles impostos pelo próprio trabalho) por meio da mobilidade espacial. No entanto, esse mesmo projeto tende a acentuar o aumento da composição orgânica do capital (mais capital fixo do que trabalho vivo) no longo prazo e a consequente tendência à superacumulação de capital. Além disso, novos investimentos são feitos independentemente da trajetória futura da demanda agregada global, que se contraiu acentuadamente desde 2009, com a suposição de que poderia se recuperar em breve. Nessas condições, a verdadeira ameaça a esses investimentos é a criação de excesso de capacidade.

A nova Rota da Seda também tem um lugar muito importante para a América Latina. A perspectiva de integração regional parece ser de maior interesse para o âmbito e os métodos do referido projeto, mas trata-se de um processo aberto de longo prazo que será definido com mais clareza e precisão em movimento, incluindo negociações com governos e comunidades locais.

A posterior extensão da iniciativa para a América Latina e a adesão de um número crescente de países, que ultrapassa a casa dos 120, deixou o imperialismo em polvorosa. De qualquer modo, a iniciativa chinesa permanece a principal fonte de financiamento de obras de infraestrutura para a maioria dos países em desenvolvimento, sobretudo os mais pobres, principalmente porque as alternativas existentes, como o Banco Mundial, tornaram-se quase inacessíveis devido às inúmeras condicionalidades e, sobretudo, às garantias financeiras exigidas.

A China tem uma abordagem mais flexível para os financiamentos, aceitando, inclusive, pagamentos na forma de fornecimento de mercadorias cuja exportação será facilitada por essas obras de infraestrutura ou mesmo arrendamento das novas instalações para empresas chinesas por um determinado número de anos, como o porto de Hambantota, no Sri Lanka, arrendado pelo China Merchants Group por 99 anos.

O fracasso imperialista

Para fazer frente à iniciativa da China, os Estados Unidos ensaiaram, no governo Trump, diversos empreendimentos, todos frustrados. O mais recente deles foi a proposta levada pelo presidente Joe Biden à reunião do G7, realizada na Inglaterra, no ano passado, e que foi batizada de “Reconstruir um Mundo Melhor” (Build Back Better World ou 3BW, em inglês).

O presidente Joe Biden e outros líderes do G7 esperavam que o plano fornecesse uma parceria de infraestrutura para ajudar a suprir os US$ 40 trilhões necessários para nações em desenvolvimento até 2035. “Não se trata apenas de confrontar ou enfrentar a China”, disse um alto funcionário do governo Biden. “Mas, até agora, não oferecemos alternativas positivas que reflitam nossos valores, nossos padrões e nossa maneira de fazer negócios”. Ou seja, os Estados Unidos desejam que esses financiamentos ajudem a alavancar sua própria agenda política. Nesse sentido, não seria muito diferente do Banco Mundial.

Segundo informou a Casa Branca, o G7 e seus aliados usariam a iniciativa para mobilizar capital do setor privado em áreas como clima, saúde e segurança sanitária, tecnologia digital e equidade e igualdade de gênero. Não ficou claro, entretanto, como o plano funcionaria exatamente, ou quanto capital pretende distribuir e quem disponibilizará o dinheiro.

O sucesso chinês

A China tem hoje não só os recursos, como a expertise para desenvolver projetos de infraestrutura em todo o mundo. Depois de décadas investindo pesadamente em seu próprio território, as empresas chinesas na área de construção, hoje as maiores do mundo, estão em busca de oportunidades para construir rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, metrôs e redes de transmissão de energia e telecomunicações, dada a maturação do mercado chinês.

A China construiu em pouco mais de uma década uma rede de mais de 37 mil quilômetros de trens de alta velocidade unindo todas as grandes cidades do país. Hoje é possível viajar praticamente de qualquer capital de uma província chinesa até Pequim em cerca de oito horas utilizando uma moderna rede de trens que cortam todo o território chinês a mais de 300 quilômetros por hora. Em volta de cada capital de província foram construídos anéis ferroviários que ligam as principais cidades em circuitos de uma ou duas horas, proporcionando enorme mobilidade urbana sem provocar o inchaço dos grandes centros urbanos.

A hidrelétrica de Baihetan, com quase 300 metros de altura e feita com mais de oito milhões de metros cúbicos de concreto, no rio Jinshajiang – o “Rio de Areia Dourada”, como a parte superior do rio Yangtzé é conhecida, mostra a enorme capacidade da China na área de infraestrutura. Inaugurada em 2022, mesmo em um país onde a rapidez na construção de infraestrutura é a norma, a construção da maior represa em arco do mundo em apenas quatro anos foi um feito surpreendente. De acordo com a agência de notícias Xinhua, a usina possui uma capacidade total de 62,4 bilhões de quilowatts por ano, contando com 16 unidades geradoras de produção nacional, sendo esta a maior capacidade unitária do mundo. De acordo com a equipe construtora, o que diferencia o projeto Baihetan é o uso massivo de inteligência artificial (IA) no seu gerenciamento. Quase todos os envolvidos, desde trabalhadores do local a engenheiros, inspetores de qualidade e gerentes seniores foram governados por um sistema de IA que fica mais inteligente a cada dia. A equipe do projeto, liderada pelo engenheiro sênior Tan Yaosheng, disse que a IA melhorou significativamente a eficiência operacional e estabeleceu um recorde mundial na construção de barragens de arco. No passado, a tomada de decisões dependia inteiramente de gerentes de projeto, mas mesmo os mais experientes e dedicados seriam incapazes de lidar com todo o fluxo de informações 24 horas por dia, para coordenar, por exemplo, o fluxo de milhares de caminhões. Com o uso da inteligência artificial, as milhares de atividades são coordenadas com precisão em tempo real. Até o trajeto e a velocidade dos caminhões são controlados para que tudo funcione como um relógio, sem atrasos, 24 horas por dia.

O mesmo não pode ser dito dos Estados Unidos. A infraestrutura americana, sobretudo as ferrovias, está sucateada, mas, ainda assim, o presidente Biden encontrou enorme resistência no Congresso por parte dos republicanos para aprovar um plano de investimentos de US$ 2,1 bilhões para renová-la. Biden preferiu construir guerras e genocídios do que melhorar a infraestrutura do país.

As trombadas diplomáticas brasileiras

É incrível a capacidade do presidente Lula de criar problemas diplomáticos internacionais e não resolver os que devia resolver. O Brasil assistiu atordoado o diplomata de Israel fazer afrontas ao presidente, sem que ele tomasse qualquer medida de retaliação. Nosso embaixador foi ofendido em Tel Aviv e nada aconteceu. Netanyahu declarou Lula “persona non grata” e o Brasil mantém intactas as relações diplomáticas com o país pária do mundo. Depois, inventou as querelas sobre as eleições na Venezuela, pedindo as atas. Recentemente, criou o maior incidente diplomático da história, fazendo feio perante os maiores líderes do Sul Global ao vetar publicamente a entrada da Venezuela nos BRICS+. Foi criticado em público por Putin e recebeu pesadas críticas da Venezuela e da esquerda brasileira. O ato de Lula correspondeu a uma declaração de guerra à Venezuela. Pode haver retaliação formal de Maduro. Finalmente, rejeitou o convite feito ao Brasil em grande estilo e especial deferência pelo presidente da China para participar do projeto “Cinturão e Rota” da China. Desta vez, conseguiu ficar mal com o presidente de 1,2 bilhões de pessoas.

Lula não estava ainda contente com o estrago feito nas nossas relações diplomáticas. Ao apoiar a candidata derrotada nas eleições, Kamala Harris, chamou o candidato Donald Trump de Hitler das Américas e conseguiu realizar a proeza de ter contra si os dois presidentes das principais potências mundiais, e o presidente do país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo. E o pior: tudo o que fez foi para se submeter aos desejos do imperador de plantão e jogar no lixo a nossa soberania nacional.

O Brasil precisa de participar da iniciativa Cinturão e Rota. Como um país continental sofre imensamente por só ter estradas rodoviárias em péssimo estado para o transporte de pessoas e mercadorias. Seria importantíssimo os investimentos nas estradas rodoviárias existentes, além da criação de uma malha ferroviária que ligasse todas as capitais do país, com velozes trens bala , para transportar não só mercadorias, mas também pessoas. O trabalhador brasileiro está condenado a não conhecer o país pois só pode fazê-lo com o caro e ineficiente transporte por ônibus, cujas viagens mais longas levam dias. Não depender sempre do transporte dos caminhoneiros seria também uma grande vitória politica sobre a extrema direita. A integração rodoviária e ferroviária da América do Sul também é viável, já que apenas Paraguai, Colômbia e Brasil, até agora, não participam da iniciativa. Além desta questão do transporte vários outros setores poderiam receber os investimentos chineses. A não participação do Brasil será um grande prejuízo para o conjunto dos brasileiros e para a própria América Latina.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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