O artigo A ofensiva russa na Ucrânia e os espectros de uma situação “pré 1914”, escrito pela argentina Claudia Cinatti e publicado no portal Esquerda Diário, do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), bem que poderia ter sido reproduzido pelo jornal O Globo. Trata-se de um enorme lamento diante da crise em que se encontra o imperialismo, um desespero diante do fato de que os donos do mundo não estão conseguindo mais manter a sua ditadura sobre os povos. O que é motivo de festa e fogos para os oprimidos em todo o planeta, para o MRT, é motivo para tristeza.
O artigo tem início com um longo relato sobre a guerra da Ucrânia, na qual a autora enrola, enrola, enrola, mas não consegue esconder o óbvio: que a Rússia está vencendo o conflito.
“Em seu avanço, o exército russo quebrou praticamente sem resistência as linhas de defesa ucranianas e tomou cerca de 12 cidades pequenas, incluindo Vovchansk, forçando a evacuação massiva de civis, uma cena que não era vista desde o início da guerra.”
O que, no entanto, chama a atenção, nessa primeira parte do texto, é a explicação da autora para o avanço russo. Diz ela:
“Há pelo menos duas razões que explicam a situação vulnerável da Ucrânia, que depende absolutamente do armamento e financiamento das potências ocidentais para sua sobrevivência. A primeira é a demora na chegada de munições e armamento dos Estados Unidos, já que o governo Biden só conseguiu a aprovação no Congresso do pacote de ajuda militar de 61.000 milhões de dólares no final de abril, após meses de disputa com o partido republicano […] A segunda razão é a escassez de soldados devido às baixas em uma guerra que já dura mais de dois anos e a uma certa crise de recrutamento (a idade média dos soldados é de 40 anos).”
Dizer que há “uma certa crise de recrutamento” apenas revela qual o verdadeiro objetivo da autora: tentar minimizar, do ponto de vista da propaganda, o estrago que o exército russo causou à Ucrânia. Não há “certa crise”, há uma situação que beira o total colapso da sociedade ucraniana. Milhões de pessoas já deixaram o país, pessoas estão sendo sequestradas nas ruas e enviadas para os campos de batalha, idosos estão sendo recrutados. A Ucrânia está diante de uma situação de desespero total. Cinatti, contudo, não quer apresentar a situação ucraniana como de fato delicada porque isso lhe obrigaria a explicar como um país atrasado e oprimido como a Rússia conseguiu praticamente liquidar um exército treinado pela OTAN.
A outra ideia que chama bastante a atenção é a de que, segundo ela própria, a dificuldade militar da Ucrânia estaria na suposta falta de apoio financeiro, logístico e militar dos Estados Unidos ao país do Leste Europeu. Se é assim, Cinatti teria de admitir que não se trata de uma guerra entre Rússia e Ucrânia, mas entre Rússia e Estados Unidos. Sendo assim, a autora e o MRT não poderiam levantar a bandeira da defesa do “povo ucraniano”, que, conforme a própria declaração da autora leva qualquer um a concluir, é apenas uma fachada para a defesa dos interesses norte-americanos.
O seu esforço para tentar manter o apoio aos “ucranianos”, mesmo quando fica óbvio que não passam de bucha de canhão dos Estados Unidos, bem como para esconder o sucesso russo, levará a autora a chegar a uma tese absurda: a de que estaríamos diante de uma situação “pré-1914”, na qual as potências imperialistas estariam se preparando para um confronto militar aberto pela “hegemonia mundial”. Isto é, de que estaríamos, assim como no início do século, assistindo a países imperialistas se preparando para entrar em um conflito para definir quem será o ditador-mor da ordem mundial, quem será o país a dominar o maior número de colônias, quem será o país com mais poder de decisão na política internacional.
No início do século XX, havia, de fato, essa disputa. Mas e hoje? Por acaso Reino Unido, França, Estados Unidos, Japão e Alemanha, que são os grandes países imperialistas, estão em conflito para decidir quem será o dono do mundo? Não, os conflitos de hoje são entre Rússia e Estados Unidos, China e Estados Unidos, Irã e Estados Unidos. Isto é, de países atrasados, oprimidos, que não têm a menor condição de estabelecerem uma ditadura mundial, contra os países que lhe oprimem. A guerra da Ucrânia não é uma expressão “reacionária” da disputa pela “hegemonia” imperialista, mas expressão de um amplo movimento de contestação da ordem imperialista.
A tentativa do MRT de atender à propaganda imperialista e considerar a ação da Rússia na Ucrânia como reacionária é tão grande que a autora chega a mais uma conclusão absurda. Diz ela:
“A contra-tendência é o surgimento de um poderoso movimento contra o genocídio de Israel em Gaza e contra os governos que colaboram com o massacre perpetrado por B. Netanyahu, que está enfrentando uma forte repressão estatal. O surgimento desse movimento, com base nas principais universidades dos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Espanha, Alemanha, e com uma tendência à globalização, é um dos acontecimentos mais significativos na luta de classes internacional. O aparecimento desta vanguarda juvenil com uma incipiente consciência anti-imperialista (o que a relaciona com os movimentos radicalizados da década de 1960 contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis) é o avanço de outros processos profundos de luta contra a exploração e a opressão colonial, como a própria luta palestina contra a opressão israelense ou a atual revolta em Nova Caledônia contra o imperialismo francês. A grande lição do século XX é que somente o desenvolvimento desta luta de classes, que leve a revoluções proletárias, poderá deter a tendência do imperialismo às crises e às guerras.”
Isto é, para a autora, a ação das massas palestinas estaria em oposição à guerra da Ucrânia. O que ela precisaria explicar, no entanto, é por que Rússia, China e Irã são os países mais importantes tanto em um caso, como em outro. Ainda que a ação palestina seja muito mais radical, pois é produto de uma revolução, elas são parte do mesmo movimento: o movimento de derrubada da ordem vigente.
A luta do povo palestino contra o Estado nazista de “Israel” aparece para o MRT apenas como um pretexto para não se posicionar ao lado dos países oprimidos na luta contra a dominação imperialista. Para não defender a Rússia em sua guerra contra a OTAN, para não defender a China contra as provocações japonesas e norte-americanas, para não defender a Coreia do Norte contra as provocações sul-coreanas, para não defender o Irã contra as ameaças sionistas. O MRT defende tanto o povo palestino que quer que ele se defenda sozinho, sem ajuda de ninguém.
Não se trata de defesa alguma. Na medida em que o imperialismo se prepara para um grande enfrentamento contra aqueles que desafiam a sua dominação, o MRT aparece como um advogado da propaganda imperialista contra os países que estão lutando pela derrubada da ordem vigente.