Resenha livro 147 – “Memórias do Subsolo” – Fiódor Dostoiévski – Ed. 34 – Tradução Boris Schnaiderman
Este romance é um dos mais intrigantes e, segundo a crítica, dos mais “dostoiéviskianos” daquele autor russo expoente da literatura universal do século XIX. Em outras palavras, nestas “Memórias do Subsolo” acumulam-se a sua densidade narrativa, o aprofundamento até o interior do sub-consciente de personagens, cortes abruptos no enredo e a temática filosófica, com polêmicas junto às correntes de pensamento da época.
Inicialmente o leitor parte desde a mente atormentada de um narrador aos seus 40 anos de idade (primeira parte do livro, “O Subsolo”) quando através de um monólogo nos é dado a conhecer menos a sua história de vida e mais a sua visão social e filosófica de mundo; e “A Propósito da Neve Molhada”, segunda parte do livro, quando este mesmo personagem atormentado, que nutre um infinito ódio por si próprio e ainda, paradoxalmente, se sente superior ao resto do mundo, relata alguns eventos que vão do trágico ao patético, como seu encontro com ex colegas de colégio que o odeiam até o seu posterior conhecimento de Liza, a prostituta.
E quem é este autor que nos fala sempre desde baixo, desde o subsolo?
“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina.(Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva.”.
O memorialista diz ter uma aparência física horripilante: é extremamente feio e gostaria ao menos de ter um “ar de inteligente”, mas sabe intimamente que nem isso é possível. É pobre, não possui recursos e tem vergonha da sua pobreza. Tem um criado que odeia e por quem é humilhado. Como funcionário público que ganha um salário miserável, vivendo na penúria, é um personagem que remete a Luís de “Angústia”, de Graciliano Ramos, tanto nas coincidências dos trejeitos, quanto no sofrimento diante do pauperismo ou mesmo nos desencontros com a mulher.
A primeira parte de “Memórias do Subsolo” veio a público em 1864 e aqui já se percebe uma constante na narrativa: uma certa inquietação da personagem frente aos horizontes intelectuais de seu tempo. A ironia com que trata a medicina na passagem acima citada remete em linhas gerais a uma espécie de crítica da razão prática que iria encontrar seu endosso na filosofia irracionalista de Friederich Nietzche: este, ao ler esta obra de Dostoiéviski, disse a um amigo numa missiva: “A voz do sangue (como o denominar de outro modo?) fez-se ouvir de imediato e minha alegria não teve limites”.
Percebe-se como esta crítica do racionalismo filosófico – que encontraria sua expressão típica no positivismo – surge de forma pioneira e de certa maneira já sublinhando os limites da perspectiva formal e linear de ver o mundo em personagens que fazem o contraponto ao narrador, como seus ex-colegas de escola, especificamente ZVIERKOV. Este é o exato contrário do memorialista, qual seja, com distinto cargo estatal, sempre rodeado de belas mulheres, amigos e dinheiro: e de outro lado, medíocre intelectualmente, ao menos aos olhos de seu rival.
Certamente, o isolamento a que este “homem doente” se remeteu ao longo de sua vida deve-se ao fato de não se dar com uma sociedade baseada na razão instrumental, incapaz de perceber a superficialidade das convenções sociais. O fato de não ter tido família, segundo o próprio relata a Liza prostituta, também o tornara “insensível”. Há ademais uma perspectiva muito desfavorável do homem em geral por parte do narrador: “penso que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato”. Não seria o isolamento uma atitude que nos levaria a pensar em Zaratustra que também é uma espécie de eremita para quem apenas alguns poucos estariam capazes de ver o mundo para além das aparências mundanas?
Justifica-se o autor quanto às suas memórias, dialogando com aquele homem “comum” ou que baseia as suas ideias dentro do senso comum:
“E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousaste levar até a metade sequer, e ainda tomaste a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja ainda mais “vivo” que vós. Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar”.
Observa-se aqui uma crítica contundente aos homens letrados de seu tempo: a falta de autenticidade se revela por meio da incorporação e reprodução de ideias prontas, criando uma cultura medíocre, a dominante, estando o narrador à parte, desde o seu subsolo.
“Memórias do Subsolo” foi lançado dois anos antes do grande romance de Dostoiéviski, “Crime e Castigo” (1866). Outros livros marcantes do escritor russo disponíveis em boas traduções para o leitor brasileiro são “O Idiota” (1868) e “Os Irmãos Karamazov” (1878).