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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

‘Malazarte’ – Graça Aranha

"Tanto no romance, quanto na peça de teatro, não fica claro ao leitor qual a filiação exata do escritor acerca das ideias propostas por Nietzsche"

Resenha Livro – “Malazarte” – Graça Aranha – Ed. Iba Mendes

O trabalho literário mais conhecido do escritor maranhense Graça Aranha certamente é o livro “Canaã”, publicado no ano de 1908.

A história foi elaborada durante o período em que o escritor atuou como juiz municipal de Porto do Cachoeira, no estado do Espírito Santo. Naquela Comarca teve contato com os colonos alemães que lá constituíram povoados.

As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vista distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.

A temática filosófica, ou mais especificamente a crítica do racionalismo enunciada pelo pensamento de Nietzsche, seria objeto de um tratamento mais acurado na peça de teatro “Malazarte”, encenada pela primeira vez no ano de 1911.

Enquanto “Canaã” foi elaborada no período em que o escritor atuava como juiz numa comarca do Brasil profundo, a peça Malazarte foi criada já num momento posterior, quando o escritor troca a magistratura pela carreira diplomática e passa do interior à vida cosmopolita da Europa.

Serviu em várias missões diplomáticas entre 1900/20, passando por Inglaterra, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, França e Holanda.

“Malazarte” foi representada pela primeira vez na França, no Théatre de L’ouvere, fundado por artistas ligados ao movimento simbolista.

Pode-se dizer que a peça se situa dentro desse movimento literário simbolista.

Tratava-se de escola voltada à crítica da razão e do positivismo. De certa maneira, antecipava o modernismo cujo epicentro deu-se no Brasil na Semana de 1922, movimento do qual Graça Aranha participou ativamente. Esses escritores se opunham àquilo que diziam ser o academicismo, derivado das tradições literárias imediatamente anteriores: romantismo, realismo e naturalismo.

O que havia naquele período era um esgarçamento e esvaziamento da crença na inefabilidade da razão e do progresso. As diversas inovações tecnológicas da Belle Époque, com os seus telégrafos, bondes elétricos, fonógrafos, telefone, e cinema, também criaram as condições para que o pensamento filosófico fosse além do impulso cartesiano e cientificista de fins do século XIX.

O evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

O protagonista Malazarte é representativo da crítica radical de Nietzsche à tradição filosófica platônica e ao pensamento cristão. Sua figura enuncia os aforismos que tornaram conhecidas as teses relacionadas àquela crítica pioneira à tradição filosófica racionalista. Quando Nietzsche pioneiramente denuncia os limites da razão, estava já se antecipando aqueles eventos dramáticos de guerra e destruição que marcaram o século XX.

Nessa peça, a existência da ação é praticamente inexistente.

O cerne dos diálogos não está relacionado a eventos, não se relacionam a um enredo com começo, meio e fim, mas a elucubrações e aforismos filosóficos enunciados por personagens representativos das diferentes perspectivas filosóficas em jogo.

A peça se inicia num dia de Natal, momento do renascimento de Cristo.

Pouco se fala sobre o lugar onde os eventos se passam e o período histórico dos fatos.

Há uma predominância pela figura do mar em detrimento da terra. O protagonista Malazarte está em oposição a tudo o que pode ser considerado telúrico. Para ele “nada é eterno na vida imortal”. Afirma estar sempre em eterna mutação. Prefere o mar à terra justamente por buscar sempre estar em eterna transformação, como as águas do oceano, ora tranquilas, ora em forte agitação. Prefere a instabilidade do céu e das nuvens à solidez e imutabilidade da terra.

A personagem “Mãe” chora pela morte recente do seu marido e apela ao seu filho, Eduardo que a ampare, após credores do falecido exigirem o pagamento de dívidas pecuniárias, sob pena de penhora da casa. De forma significativa, a Mãe apenas se interessa pelo filho após a morte do seu companheiro. Eduardo, por sua vez, rejeita as preocupações terrenas da mãe. Aposta sua existência no amor e na afirmação da vida. O seu amor erótico pela mulher amada é o momento de rompimento com os elos maternos.

O personagem Raimundo, filho de Militina, acompanha Malazarte numa pescaria e morre afogado. Sua mãe revolta-se contra a morte, ou mais exatamente contra a natureza das coisas, e por isso torna-se louca.

A loucura, nos exatos termos nietzschianos, dá-se quando o homem se revolta contra a natureza. É a fuga da realidade, da imeaticidade da vida, em torno do ideal, o início da loucura do homem. Ela se expressa quando Militina começa a deitar comida nas águas do mar, buscando alimentar a alma do filho morto:

“Onde está agora? Reponde… O pobrezinho deve estar com fome… (começa a deitar ao mar a comida que trouxe na cesta). Tu não me voltas, mas tu comes… E se estás morto, tua alma não terá fome… Toma mais! Como tens fome, meu filho! Faz frio aí em baixo dágua? Hein? Dize à tua mãezinha…”.

Esses são alguns dos fatos ou ações da peça, que, como dissemos, quase nada tem de importante.

O que deve ser considerado são basicamente os diálogos. Neles vemos uma sequência de aforismos, enunciado por personagens que despontam como pertencentes a dois grupos: os “fortes” (Malazarte, Dionísia), e os “fracos” (Mãe, Militina).

A oposição filosófica se dá nos exatos termos da crítica da filosofia grega traçada por Nietzsche.

Os personagens “fracos” são aqueles que negam a imediaticidade da vida, a afirmação da vontade e da força em oposição ao medo, fraqueza e à loucura, assim descrita como a revolta do homem em face da natureza. Os personagens “fortes” são aqueles que vão além da alegoria da caverna de Platão. Não estão em busca de um ideal ou de uma teoria que explique as sombras vistas de dentro da caverna. São os seres livres, abertos incondicionalmente às inconstâncias da vida e expressam as forças, o brilho e a vivacidade da natureza. Mais importante do que teorizar sobre a sombra na caverna é vê-la em sua plenitude, sem para isso buscar evadir-se do real. Não se trata de sair da caverna, mas lá permanecer, de acordo com essa teoria.

Eduardo está a meio passo entre o niilismo criticado por Nietzche (representado pela Mãe e pela sua criada Militina) e o anticristo enaltecido pelo filósofo alemão (representado pelo protagonista Malazarte). Está com um pé no grupo dos “fracos” e outro pé no grupo dos “fortes”.

Este meio-termo talvez tenha sido o posicionamento final de Graça Aranha acerca do problema filosófico já traçado em Canaã.

Tanto no romance, quanto na peça de teatro, não fica claro ao leitor qual a filiação exata do escritor acerca das ideias propostas por Nietzsche.

Como boas obras artísticas, este posicionamento fica aberto às indagações do leitor.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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