A meritocracia, frequentemente apresentada como um sistema justo que recompensa o esforço e o talento, é um dos pilares ideológicos que sustentam o capitalismo contemporâneo. Contudo, uma análise crítica revela que essa ideia funciona como um mecanismo de manutenção das desigualdades sociais, mascarando as estruturas históricas e econômicas que perpetuam a exclusão. Desde a Revolução Francesa, a burguesia utilizou os ideais iluministas para consolidar seu poder, adaptando conceitos como liberdade e igualdade para justificar a dominação sobre o proletariado. Nesse contexto, a meritocracia emerge como uma ferramenta ideológica central, reproduzida através de políticas públicas e aparelhos ideológicos como a imprensa, a escola e a religião.
O conceito de meritocracia ganhou força com o pensamento liberal que emergiu durante a Revolução Francesa. Sob a bandeira da igualdade de oportunidades, a burguesia defendeu que o sucesso individual seria alcançado através do esforço pessoal e da competência. No entanto, essa narrativa ocultava as profundas desigualdades estruturais. Como apontado por Marx, a transição do feudalismo para o capitalismo não apenas consolidou a dominação da burguesia, mas também criou um sistema que alienava o trabalhador, transformando-o em um mero instrumento de produção.
No campo educacional, essa ideologia se materializou na divisão entre educação profissionalizante, destinada às classes trabalhadoras, e o ensino intelectualizado, reservado às elites. Essa separação não apenas perpetuava as desigualdades, mas também atribuía aos indivíduos a responsabilidade pelo “fracasso” escolar, ignorando os fatores estruturais que os colocavam em desvantagem.
Louis Althusser define os aparelhos ideológicos do Estado como estruturas que, de forma sutil, reproduzem a dominação de classe. Entre esses aparelhos, a escola desempenha um papel crucial ao naturalizar as desigualdades sociais. Sob o discurso de que todos têm as mesmas oportunidades, a educação formal se torna um campo onde o fracasso é individualizado e despolitizado. A imprensa, por sua vez, reforça essa narrativa ao exaltar histórias de “sucesso” individual, ignorando as barreiras estruturais que impedem a maioria de alcançar tais resultados.
Por exemplo, programas televisivos e noticiários frequentemente apresentam o “self-made man” como modelo ideal, exaltando indivíduos que supostamente ascenderam socialmente apenas por seu esforço. Essa narrativa desconsidera fatores como herança, redes de contatos e acesso a recursos que facilitam o sucesso de poucos, enquanto a maioria enfrenta obstáculos insuperáveis.
Exemplos recentes dessa narrativa podem ser observados no Brasil, especialmente quando contextualizamos a influência da Doutrina Truman, que consolidou a hegemonia capitalista no pós-Segunda Guerra Mundial. A difusão de valores como o individualismo e o empreendedorismo, alinhados às necessidades geopolíticas dos Estados Unidos, moldaram também a formação do pensamento econômico e social brasileiro. Pablo Marçal, durante sua campanha para o governo de São Paulo, construiu sua imagem pública como um exemplo de superação pessoal. Ele se apresentava como alguém que, por meio do trabalho duro e da mentalidade empreendedora, alcançou o sucesso. Essa estratégia, amplamente divulgada nas redes sociais e em eventos públicos, reforçava o discurso de que qualquer pessoa poderia vencer desde que tivesse dedicação suficiente, ignorando os privilégios estruturais e as desigualdades sociais que facilitam o sucesso de alguns.
Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, é outro exemplo emblemático. Sua trajetória empresarial é frequentemente usada pela imprensa como prova de que o esforço individual e o espírito empreendedor são suficientes para o sucesso. Hang utiliza ativamente sua imagem pública para defender a meritocracia, muitas vezes criticando programas sociais e defendendo que o crescimento econômico depende exclusivamente da “força de vontade” de cada indivíduo. Esse discurso reforça a ideia de que as desigualdades são fruto da falta de esforço, não de barreiras estruturais.
Outro caso relevante é o de influenciadores digitais que propagam o chamado “mindset de sucesso”. Esses indivíduos, muitas vezes com histórias pessoais de ascensão social, vendem cursos e palestras prometendo “fórmulas” para o sucesso financeiro. A imprensa frequentemente os retrata como exemplos a serem seguidos, desconsiderando as condições privilegiadas que os ajudaram a atingir suas posições atuais. Essa narrativa não apenas ignora as desigualdades, mas também transfere para o indivíduo a responsabilidade por sua situação socioeconômica.
A meritocracia também atua como um mecanismo de exclusão ao naturalizar o fracasso das classes trabalhadoras. A escritora e psicóloga Maria Helena Souza Patto aponta que a escola é estruturada para reforçar a ideia de incapacidade dos alunos das classes populares, atribuindo o baixo desempenho a fatores individuais, como falta de esforço ou habilidade. Esse discurso mascara as limitações impostas por um sistema educacional que não oferece condições equitativas para todos.
Essa lógica se estende ao mercado de trabalho, onde a meritocracia é utilizada para justificar as desigualdades salariais e a falta de mobilidade social. Os trabalhadores são levados a acreditar que sua condição é fruto de sua própria incompetência, enquanto o sistema capitalista concentra riqueza e poder nas mãos de uma minoria. Esse mecanismo de controle impede que as massas questionem as estruturas que perpetuam sua exploração.
As políticas públicas também são moldadas para reforçar a ideologia meritocrática. Programas de assistência social, por exemplo, são frequentemente condicionados a requisitos que enfatizam o “mérito” do indivíduo, como frequência escolar ou desempenho acadêmico dos filhos. Essa abordagem ignora as barreiras estruturais que limitam o acesso das famílias mais pobres a condições adequadas de educação, saúde e alimentação.
Além disso, reformas trabalhistas e educacionais muitas vezes priorizam a eficiência econômica em detrimento da equidade social. O foco na formação de mão de obra barata e na redução de direitos trabalhistas reflete os interesses da burguesia, que se beneficia da manutenção de uma massa trabalhadora submissa e desprovida de poder de barganha.
Para desafiar a ideologia da meritocracia, é essencial promover uma educação crítica e emancipadora que revele as estruturas de dominação subjacentes. Isso inclui repensar o currículo escolar para incluir análises históricas e sociológicas que evidenciem as desigualdades estruturais e compensem as desvantagens acumuladas pelas classes populares.
A imprensa também desempenha um papel crucial na desconstrução dessa narrativa. Contudo, é necessário reconhecer como a influência da Doutrina Truman, implementada no pós-Segunda Guerra Mundial, moldou a produção cultural e midiática em nosso país. No cinema, essa doutrina fomentou a propagação de valores alinhados ao capitalismo liberal, enquanto campanhas publicitárias e novelas brasileiras incorporaram narrativas que exaltavam o sucesso individual como resultado do esforço e do mérito. No jornalismo, a orientação foi reforçar uma visão de mundo que despolitizava questões sociais, destacando histórias de “vencedores” e ocultando as lutas coletivas por justiça social e as políticas públicas que promovem a equidade. É fundamental questionar esses interesses econômicos e culturais que orientam a produção de conteúdos midiáticos, frequentemente alinhados às elites dominantes, principalmente na última década, onde as mídias em celulares explodem no mundo e estão dominando e modificando o comportamento crítico e social dos indivíduos.
A meritocracia, longe de ser um sistema justo, é uma construção ideológica que perpetua as desigualdades sociais enquanto transfere para os indivíduos a responsabilidade pelo fracasso. Reproduzida por aparelhos ideológicos como a escola e a imprensa, e reforçada por políticas públicas alinhadas aos interesses da burguesia, essa narrativa mascara as estruturas que sustentam o capitalismo. Desconstruir esse mito exige ações concretas no campo da educação, da comunicação e das políticas públicas, além de uma mobilização coletiva para questionar e transformar as bases do sistema vigente.