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Cultura 'woke'

Identitarismo não é ‘só frescura’, é principalmente um golpe

Não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo? Para esquerdista, não

Professora do Instituto Federal de Santa Catarina, líder sindical e do Partido dos Trabalhadores em Santa Catarina, Elenira Vilela publicou no sítio Brasil 247 um artigo intitulado Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?, fazendo uma defesa do identitarismo, argumentando que a identidade, segundo a autora, seria “uma parte da luta pelo direito à vida, pela democratização do poder e pela dignidade”, diz a acadêmica, acrescentando que “o capitalismo é um sistema que enriquece alguns explorando os que só podem trabalhar para outro pra sobreviver”. Disso, Vilela deduz:

“O que o Brasil ter mais mulheres que homens, mas menos de um sexto da câmara serem mulheres tem a ver com isso? O que o Brasil ter mais negros que brancos e que essas pessoas não tiveram acesso nem mesmo ao direito ao reconhecimento como humano e, depois, a nenhum dos direitos básicos tem a ver com isso? O que o Brasil ser o país que mais mata pessoas trans do mundo tem a ver com isso? O que o governo estadual de Santa Catarina censurar um filme sobre sexualidade de Pessoas Com Deficiência (PCDs) tem a ver com isso? O que professoras que cumprindo sua função e trabalhando educação sexual nas salas de aula e, por isso, sendo perseguidas e demitidas tem a ver com isso? O que jovens sem perspectivas e idosos sem dignidade e cuidados tem a ver com isso?

A realidade é: não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo, capacitismo, especismo e tantos ismos do mundo (grifo nosso)! A razão? Não existe luta de classes sem organizar as dores e demandas da classe trabalhadora concreta (grifo nosso), a que existe de verdade, a que de fato está sendo explorada, passando fome, massacrada pela polícia, sem remédios… e não existe luta de classes sem libertar a mais importante fábrica do capital, a fábrica que produz a única mercadoria que gera valor: os úteros! Especialmente os úteros das mulheres negras de periferia.”

Muitas coisas podem ser ditas dessa colocação, a começar pelo moralismo pequeno-burguês dos trechos em destaque, muito apropriado para uma ladainha católica, mas totalmente estéreis para impulsionar qualquer coisa além do carreirismo dos setores mais direitistas da esquerda, que ainda não registraram o tamanho da desmoralização dessa ideologia. Criada pelo imperialismo para levar confusão ao interior da esquerda e dividir os trabalhadores, o identitarismo já começou a se desmoralizar junto à população e mesmo entre a esquerda.

Facilmente percebido na vida real, essa crise do fenômeno é refletido na necessidade dos seus defensores escreverem textos como o de Vilela, algo impensável há cerca de seis anos, com raríssimas exceções, entre as quais este Diário Causa Operária, tantas vezes acusado de ser “bolsonarista” por se opor ao identitarismo. Com essa consideração feita e entrando no mérito dos argumentos, chama atenção um problema típico do método identitário, para quem o rabo é que abana o cachorro e não o contrário, o que fica evidente no trecho “não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo, capacitismo, especismo e tantos ismos do mundo”.

Tudo o que Vilela identifica como um problema da sociedade de classes é, na realidade, um problema do atraso cultural provocado pela luta de classes. Não se trata de oratória, mas ter a cabeça no lugar para saber o que realmente se está enfrentando, algo fundamental para toda batalha que se trava, desde os tempos de Sun Tzu, pelo menos.

A afirmação de Elenira Vilela de que “não existe luta de classes no Brasil (e na maior parte do mundo) sem enfrentar machismo, racismo, capacitismo, especismo e tantos ismos do mundo” revela um problema clássico do identitarismo: a inversão de prioridades na compreensão da opressão. De acordo com essa lógica, todos os tipos de discriminação e preconceito teriam o mesmo peso e estariam no mesmo nível de importância que a luta de classes. Isso, na prática, desvia o foco dos interesses econômicos que constituem a base do sistema capitalista e coloca as lutas secundárias no centro da política.

Ao subordinar a luta de classes a uma infinidade de “ismos”, Vilela ignora o fato de que essas discriminações são, em última instância, decorrentes do interesse econômico da burguesia em manter e reforçar a exploração da classe trabalhadora. O machismo, o racismo e outros preconceitos são instrumentos que a elite usa para fragmentar a classe trabalhadora e reduzir os custos da mão de obra, dividindo os trabalhadores para dificultar sua unificação em torno de um projeto de luta contra a exploração econômica. 

É o interesse econômico que molda os valores sociais e não o contrário. O capitalismo, como sistema que visa maximizar o lucro, se apropria de todas as formas de opressão e desigualdade que encontra, e, quando necessário, cria novas para manter seu controle sobre a sociedade. A diferenciação de gênero e a segregação racial, por exemplo, não surgem por si mesmas, mas são reforçadas pelo sistema para aumentar a exploração da classe trabalhadora.

O racismo foi historicamente utilizado para justificar salários mais baixos para negros e imigrantes, enquanto o machismo sustenta a superexploração das mulheres, que frequentemente recebem menos pelo mesmo trabalho e são forçadas a equilibrar jornadas domésticas e produtivas. Isso fica evidente quando observamos como essas discriminações foram tratadas em diferentes momentos históricos e como seu combate esteve atrelado à luta contra o sistema econômico opressor.

Um exemplo é o direito ao aborto, conquistado pela primeira vez na União Soviética em 1920. Esse direito não se deu pela luta contra o “machismo”, mas como parte de um esforço revolucionário contra o imperialismo, que se manifestava na forma de uma opressão brutal a toda a sociedade russa.

O identitarismo se torna um obstáculo à luta de classes porque transforma essas lutas secundárias em uma prioridade absoluta, que acaba se sobrepondo aos interesses materiais da classe trabalhadora como um todo. Ao invés de unir os trabalhadores contra o sistema de exploração, promove divisões internas baseadas em aspectos identitários, colocando homens contra mulheres, negros contra brancos e assim por diante. Dessa forma, o identitarismo cumpre um papel reacionário, pois impede a formação de uma frente única de trabalhadores contra o inimigo comum: o capitalismo e a burguesia.

Quando Vilela afirma que “não existe luta de classes sem organizar as dores e demandas da classe trabalhadora concreta, a que existe de verdade, a que de fato está sendo explorada”, ela ignora que essas dores e demandas não são igualmente importantes para o avanço da luta contra o capitalismo. A luta de classes se dá em torno dos interesses econômicos que unem todos os trabalhadores, independentemente de raça, gênero ou qualquer outra característica.

Priorizar as demandas identitárias é um equívoco estratégico que desvia a classe trabalhadora de seu principal objetivo: a conquista do poder político e a superação do sistema capitalista.

O identitarismo se baseia na ideia de que a emancipação da classe trabalhadora só é possível se for acompanhada pela eliminação simultânea de todas as opressões. No entanto, essa abordagem se esquece de que o machismo, o racismo e outros preconceitos são sustentados, em grande parte, pela própria estrutura capitalista. O que Vilela propõe é tratar os sintomas, não a doença. Combater o machismo sem enfrentar a base econômica que o sustenta é como tentar curar uma dengue como se fosse febre: além de não resolver, pode terminar matando a 

Na prática, essa abordagem tem levado a um retrocesso no movimento de massas, transformando a luta de classes em um amontoado de reivindicações setoriais que se chocam entre si. É o caso, por exemplo, da política de cotas raciais, que castiga os trabalhadores brancos mais pobres, que também enfrentam dificuldades de acesso à educação e ao emprego, o que continua não beneficiando a maioria da população, que seria melhor atendida se as barreiras burocráticas e antidemocráticas ao ensino superior fossem destruídas, mas para os identitários, isso não importa. Longe de ser um instrumento de emancipação, essa ideologia é uma ferramenta de divisão da classe trabalhadora.

Outro problema da análise de Vilela é sua concepção de que o útero das mulheres negras seria “a mais importante fábrica do capital”. A comparação é infeliz e revela um profundo desconhecimento da história da luta das mulheres e do movimento operário. A produção de mais-valia — ou seja, o valor que os trabalhadores geram acima do custo de sua própria reprodução — não depende de “úteros” ou da quantidade de trabalhadores no mercado. Depende das condições de exploração impostas pela burguesia, que podem ser ajustadas de acordo com as necessidades do capital. É por isso que a luta por direitos reprodutivos deve ser vista na conjuntura da emancipação econômica e não como uma questão isolada.

Dessa forma, a argumentação de Vilela acaba caindo em um reducionismo identitário que desvia o debate do que realmente importa: a exploração econômica e a luta pelo poder político. Ao reduzir a luta de classes a um debate sobre questões identitárias, ela reforça a posição da burguesia, que, por sua vez, financia e apoia essas divisões para enfraquecer a classe trabalhadora. Não é por acaso que vemos corporações e governos reacionários apoiando campanhas feministas e antirracistas em vez de políticas que realmente melhorem as condições de vida dos trabalhadores, como o aumento do salário mínimo ou a universalização dos serviços de saúde.

Em sua conclusão, Vilela comete um último equívoco ao afirmar que “a revolução contra o capitalismo será feminista, negra, ecológica, LGBTQIAPN+ e PCD ou não será”. Na verdade, qualquer revolução que queira enfrentar o capitalismo precisará ser, antes de tudo, uma revolução da classe trabalhadora como um todo, unida em torno de seus interesses materiais e políticos. Dividir essa luta em uma infinidade de “frentes” identitárias é fazer o jogo da burguesia, que se aproveita dessas divisões para desviar a atenção dos trabalhadores de seu verdadeiro inimigo.

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