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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

House of Cards: uma série política na cultura do cancelamento

O Brasil entra na cultura do cancelamento. Relembremos um caso famoso

Encontra-se nos arquivos da Netflix uma série que foi um marco não só pelo excelente conteúdo, mas por fazer a plataforma de streaming, ainda em seus primórdios, se popularizar. Entre 2013 e 2018, foi exibida House of Cards, com Kevin Spacey e Robin Wright como um casal de políticos ambiciosos.

O enredo é sobre o jogo político nas disputas de poder no congresso e no governo estadunidense. Kevin Spacey dá vida a Francis Underwood, um jogador excelente e um explorador da hipocrisia e da falta de escrúpulos ao seu redor (que o alimenta e que são alimentadas por ele).

A forma escolhida para dar a quem assiste essa percepção está na quebra da chamada quarta parede. Nos episódios, em momentos-chaves, a narrativa é interrompida pelo próprio Francis, que olha para a câmera e tece comentários ácidos e, de certa forma, orienta a audiência sobre as intenções dos personagens e a torna meio cúmplice. É um excelente recurso.

A sagacidade e malícia de Underwood fizeram escola e Kevin Spacey ganhou prêmios por sua interpretação. Em 2015, ele recebeu o Globo de Ouro de melhor ator pela vida que dá ao personagem. 

No entanto, na época que assisti, um dado pouco repercutido chamou a minha atenção. Francis Underwood é uma representação de um deputado federal do Partido Democrata, não do Repuplicano. E a série foi um grande sucesso durante o governo de Barack Obama.

Os episódios passam ao largo do que analistas chamam de “estado profundo” e, neste ponto, não deixa de recorrer ao drama burguês. Underwood é um típico anti-heroi que já vimos em muitos filmes. O retrato acaba sendo a falta de caráter dos políticos e não a política no sistema capitalista. Mesmo assim, obviamente, a conjuntura história mantém a ambiguidade para quem olhar mais de perto.

Em 2017, tudo acabou. Os EUA foram invadidos pelo movimento identitário ´também eu´ (o leitor conhece a expressão em inglês), muito ligado ao Partido Democrata como todos sabemos. Chegaram para proteger a honra das mulheres, especialmente atrizes. o que garantiu manchetes intermináveis na grande mídia.

No entanto, Kevin Spacey não escapou. Homossexual, ao contrário do que se poderia imaginar, ele foi acusado por vários homens indefesos de ter sido abusivo e usar sua fama para obter vantagens sexuais. Sofreu cancelamento e, até hoje, a página da série no Internet Movie Database não mostra mais sua imagem, mantendo somente a de Robin Wright, que ficou no programa até 2018.

Em 2023, ele foi inocentado de todas as acusações em dois países diferentes onde processos foram abertos: Estados Unidos e Inglaterra. Mesmo assim, ainda hoje, está afastado de produções e filmes. 

Em uma entrevista de junho deste ano ao apresentador inglês Piers Morgan, reproduzida neste link da Forbes, ele aponta uma questão interessante:

Quando perguntado sobre ser “enfaticamente cancelado” em Hollywood, apesar de ter sido inocentado das acusações relacionadas às supostas agressões, Spacey se comparou aos atores cujas vidas foram “amplamente destruídas” depois que foram acusados ​​de serem simpatizantes comunistas na década de 1940.

“Já vimos isso antes. Não sou especialista nisso, mas o que observei é que há muito medo”, disse Spacey. “As pessoas têm medo de suas próprias carreiras e de suas próprias posições se ficarem do lado de alguém que foi considerado inocente. E espero que, com o passar do tempo, isso mude.”

Aí está uma comparação muito interessante: com o macarthismo. O que sugere, enfim, que o movimento de delação premiada identitário é reacionário e instrumentaliza a pauta feminista para outros objetivos que vão além de simplesmente proteger a honra e a virtude de mulheres de forma abstrata (e de homens também pelo jeito). 

Essa semana, com alguns anos de atraso, fomos finalmente incluídos no primeiro mundo da regra moral internacional. O movimento mostrou seu enorme sucesso no Brasil. Foi bem midiático, como não poderia deixar de ser e seguiu todas as cartilhas: a partir de uma testemunha crível, muitas outras começaram a aparecer.

Nunca saberemos se Spacey é ou não o que falam dele. Mas, ao contrário de 2017, estamos em 2024, com o genocídio em Gaza ocorrendo há quase um ano e ajudando a explicitar como é fácil instrumentalizar causas aparentemente dignas e usá-las como justificativa para ações nefastas.

No caso aqui, está cada vez mais claro como a destruição da reputação por comportamento sexual é um subterfúgio para se perseguir e silenciar adversários políticos. Se fizermos uma apuração, veremos que a maioria dos homens investigados são celebridades com alguma posição antissistema ou progressista, o que facilita que a punição seja vista como exemplo. É o caso da série House of Cards.

Interessante notar também que por mais que tente e por mais que ouse, Donald Trump nunca é cancelado. Tais táticas não conseguem atingir celebridades conservadoras ou ligadas ao Partido Republicano. Isso se repete no Brasil, apesar dos escândalos envolvendo pastores e políticos de direita (com raríssimas exceções).

Em 2011, o cineasta dinamarquês Lars von Trier foi acusado de ser nazista por um comentário infeliz no Festival de Cannes. Julian Assange foi acusado de estupro por diversas mulheres. Ciro Guerra, diretor colombiano do excelente filme anti-imperialista À Espera dos Bárbaros (2019), foi acusado de assédio sexual por uma jornalista de seu país. E por aí vai.

Um dia, espero não muito longe, o Brasil vai juntar os cacos dessa bomba de destruição de identidades nacionais, produzida em Harvard, chamada “racismo estrutural”. Até lá, muita água ainda vai rolar até descobrimos as reais motivações por trás do cancelamento de seu deslumbrado autor.

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