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Coluna

Filme aborda a expansão do capitalismo

Era uma vez no oeste, de Sérgio Leone, é o auge de um gênero conhecido como spaghetti western

* Artigo publicado, originalmente, em 1 de janeiro de 2024

Era uma vez no oeste (Once upon a time in the west, 1968) é um dos muitos acontecimentos cinematográficos que a década de 1960 deixou para nós. Com um roteiro de Sérgio Leone, Bernardo Bertolucci e Dario Argento, é reconhecido até hoje como um “spaghetti western”, ou seja, um filme do gênero americano western, que nós brasileiros chamamos de bangue-bangue, mas produzido e dirigido na Itália.

Muito comum naquela década, o spaghetti western girava em torno de enredos sobre pistoleiros na fronteira oeste americana, o velho oeste, lugar de histórias violentas de vingança e muito conflito. O mais interessante desse gênero é perceber como os italianos se apropriaram de uma representação cinematográfica tipicamente estadunidense que, inclusive, ajudou a definir a identidade cultural do país em filmes como os do diretor John Ford, nos primórdios de Hollywood, ou na figura de atores como John Wayne.

O spaghetti western surge após a II Guerra Mundial, com produção barata, para contar histórias de sujos, feios e malvados em duelos nas paisagens desérticas da própria Itália ou da Espanha, mas que se tornavam o Texas, Nevada e Utah, de acordo com o roteiro. O diretor que mais se destacou foi o italiano Sérgio Leone, que atingiu um novo patamar ao lançar Era uma vez no oeste. É com certeza o ápice do gênero e uma obra-prima da história do cinema.

Trata-se de um enredo sobre o avanço do capitalismo na fronteira oeste com a chegada da ferrovia como meio de transporte. Esse avanço é rápido e violento e parte da disputa sobre a posse de um pedaço de terra aparentemente seco e sem valor. A disputa sobre pedaços de terra é e continuará sendo a causa dos conflitos no mundo enquanto o capitalismo existir e enquanto a base de sua riqueza for a propriedade privada (vide a Palestina).

O viúvo Brett McBain (Frank Wolff) compra o pedaço de terra em questão e muda-se para lá com os três filhos. No dia em que sua nova esposa Jill (Claudia Cardinale) está para chegar à propriedade, a família inteira é assassinada pela gangue de Frank (Henry Fonda), um pistoleiro de aluguel que trabalha para o capitalista Morton (Gabriele Ferzetti). Surgem então as figuras dos andarilhos Cheyenne (Jason Robards) e Harmônica (Charles Bronson), este último tem um acerto de contas com Frank, para ajudar Jill, uma prostituta, a manter sua propriedade que, afinal, tem muito mais valor do que se imagina.

A beleza do filme está na forma como Leone conta a história. Cada plano e cada close up nos lembram que esta é uma viagem cinematográfica. É uma aula sobre o uso do som, do silêncio, da música e do diálogo também. Os olhos azuis de Frank, matador de crianças, visam romper com a versão estereotipada do vilão de Hollywood. A Guerra do Vietnã sangrava a Ásia no momento de sua produção. Leone usa os elementos do western para recriar o gênero à sua maneira, romper com o pretenso naturalismo da forma clássica hollywoodiana de narrar, e devolver o símbolo cultural como um espelho mais fiel da realidade violenta e suja do país que retrata. O filme foi picotado ao chegar nos cinemas americanos.

A trama que envolve os personagens, não ofusca o tema social. A luta de classes está ali. O verdadeiro vilão é o capitalista, retratado como um homem aleijado, uma metáfora visual sobre um ser adoecido, irremediavelmente torto e incapaz (impossível de ser usada nos dias de hoje). Os outros personagens são lumpens, mas, ao mesmo tempo, são guerreiros em extinção. O duelo não é só um clichê de gênero, mas o mais alto acontecimento na exposição de um código de honra impossível de compreender nas humilhações cotidianas do mundo corporativo. Obviamente, eleva os personagens a uma categoria nobre.

A figura da atriz italiana Claudia Cardinale é ressaltada por sua beleza em contraste com a dura paisagem. Em um diálogo final com Chayenne, ele lhe diz:

Chayenne: Quando puder, não deixe de dar um pouco de água aos homens lá fora (referindo-se aos trabalhadores da ferrovia). Você não sabe o que significa para um homem olhar para uma mulher como você, só olhar. E se um deles passar a mão na sua bunda, finja que não se importa. Ele fez por merecer.

A fala, obviamente, também remete ao ato de ir ao cinema: um ato de olhar. No falso moralismo à esquerda e à direita nos dias de hoje, que filme teria uma linha de diálogo como essa? No duelo final, entre Frank e Harmônica, um diálogo digno de uma tragédia. Ao longo do filme, Frank tenta ser como Morton, sem sucesso:

Harmônica: Então, você não é um homem de negócios como Morton, não é?

Frank: Sou somente um homem.

Harmônica: Uma raça antiga.

A ferrovia é a metáfora do capitalismo que desbrava uma terra inexplorada, com seus trabalhadores agitados, instalando trilhos e carregando fardos. Ela anuncia a chegada de uma nova ordem, eliminando antigas, como a dos pistoleiros e seus códigos de honra e de vingança. Tudo isso embalado pela música agridoce do maestro Ennio Morricone. O final ambíguo mostra a força da economia como propulsora da História: o trem chega à estação (como no filme dos Irmãos Lumière que inaugura o cinema), trazendo mais e mais trabalhadores, fazendo o duelo acontecer ao lado desse grande teatro, como um coadjuvante. Na sua fábula, Leone representou as mudanças de seu tempo, as históricas e as da sua arte.

Era uma vez no oeste é fácil de achar nos serviços de streaming.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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