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Coluna

Ernane Galvêas: presidente do BC e homem de confiança da ditadura

Os tecnocratas das instituições estratégicas da economia política estão a serviço da ditadura e do imperialismo desde sempre

Na série apresentada nessa coluna sobre os presidentes do Banco Central entendemos que Ernane Galvêas não poderia estar de fora dessa galeria, mesmo porque, cumpriu um papel estratégico para a ditadura até o instante que se desintegrou em 1985, substituída pela democracia liberal burguesa, com consequências nefastas para o país, sentidas até o momento.

Em algumas passagens na sua entrevista a série Histórias Contadas do Banco Central do Brasil, o ministro e tecnocrata da ditadura Ernane Galvêas revela como o controle sobre o Banco Central a favor do mercado financeiro sempre serviu como estratégia do imperialismo e da grande burguesia nacional.

O capitalismo dependente brasileiro na segunda fase do regime autoritário após o Ato Institucional número 5 (AI-5) e na mudança de rumo da política econômica sob a batuta de Delfim Neto à frente do Ministério da Fazenda passa a adotar ações de cunho desenvolvimentistas diante da crise de estagnação devido em grande parte a política contracionista anti-inflacionária e também dos próprios entraves da economia mundial. No primeiro momento o imperialismo delegou a tarefa de “limpar o terreno” aos países periféricos que fizeram a sua “lição de casa” de impor a fórceps um modelo econômico que combinasse arrocho salarial brutal, uma política monetária restritiva anti-inflacionária e planos de ajuste de gastos públicos enxuto com um pacote de impostos que beneficiassem os grandes capitalistas, além de políticas de abertura comercial e financeira.

No segundo momento o imperialismo avalizou um modelo mais dirigista desenvolvimentista como forma de expandir os investimentos, principalmente a partir de aportes financeiros internacionais e demais políticas que absorvessem o capital externo na economia brasileira.

Nesse contexto da economia política brasileira o Banco Central teve um papel bastante intenso de adequação as novas demandas do mercado financeiro, as preocupações com o controle inflacionário, o equilíbrio do déficit público e da dívida externa. Essa adequação também diz respeito a elevada entrada de capitais externos e a expansão do crédito internacional. O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND I) e as novas diretrizes de expansão dos investimentos do setor público e da infraestrutura impuseram tarefas adicionais e diferentes em relação ao momento anterior (1964-68).

Segundo a Coleção História Contada do Banco Central do Brasil V. 6 (2019, p. 76-78):

A gestão da economia de 1964 a 1969 Que avaliação, de caráter geral, poder-se-ia fazer sobre as diferenças que marcaram as políticas econômico-financeiras dos governos Castelo Branco e Costa e Silva? Em princípio, eu diria que houve uma continuidade na política econômica – até escrevi alguns trabalhos a esse respeito.10 É evidente que, no governo Castelo Branco, foi preciso promover a reconstrução de muitas coisas que, visivelmente, não estavam funcionando bem, ou que haviam sido destruídas nos períodos anteriores. Então, sob a liderança do doutor Bulhões, na Fazenda, e do Roberto Campos, no Planejamento, foi feito um trabalho de peso para a renovação dos institutos jurídicos. Surgiu um grande número de novas leis, de decretos, e fizeram-se várias reformas, para colocar os fundamentos de uma nova orientação na política econômica.11 E isso se fez com um sentido bastante privatista e liberal, numa posição que confrontava com muitos aspectos da política anterior, em especial, mas não apenas a que foi desenvolvida por João Goulart. Desde 1950, vínhamos assistindo a um processo de maior ênfase na intervenção do Estado no domínio econômico, com a criação de muitas instituições públicas. A nova orientação do governo Castelo Branco visava deter a marcha desse processo de estatização, dar maior ênfase à privatização, à iniciativa privada, e abrir uma política liberal, de maior participação dos empresários e menor ingerência do governo nas atividades econômicas. E isso foi feito, muitas coisas foram consertadas. Em 1964, havia uma perspectiva de inflação de 120% ao ano, e o orçamento foi equilibrado por essas medidas de austeridade na área do doutor Bulhões. No governo Costa e Silva, com o Delfim no Ministério da Fazenda, houve uma continuidade desse processo. Não se alteraram os rumos da política econômica, que achávamos muito consistente e que estava de acordo com as linhas da escola de pensamento dos novos administradores. Houve uma pequena mudança de comportamento e de atitude no que diz respeito à política de crédito, talvez, sobretudo à política de crédito agrícola. O Nestor Jost, na presidência do Banco do Brasil, era marcadamente um homem de fomento da agricultura; e o Delfim, por seu turno, tinha uma grande preocupação em produzir uma expansão substancial da safra agrícola, visando também às exportações. Isso imprimiu uma mudança no comportamento da administração. A administração anterior havia sido excessivamente austera em relação aos gastos públicos e à expansão monetária, tendo chegado a uma recessão, em 1966 e 1967, que foi de certa forma importada, porque havia um declínio das atividades econômicas na área internacional. Nesses dois anos, com a dureza no mercado interno e a recessão na área externa, a economia brasileira sofreu um declínio na sua taxa de expansão. E o Delfim entrou com o ânimo de “fazer chover nas cabeceiras”, irrigar o interior do Brasil com maior expansão de crédito, no sentido de ativar a agricultura. Isso produziu, realmente, alguns resultados, mas talvez tenha produzido também um prazo mais prolongado para o processo de estabilização monetária. De qualquer forma, essa mudança de atitude não interrompeu a visão do governo em relação à inflação: havia que combater a inflação, havia que jogar a inflação para um patamar suportável pela sociedade brasileira e que não pusesse em risco as taxas de investimento e o processo de desenvolvimento econômico. E isso foi feito com base na mesma concepção, na mesma filosofia e segundo as mesmas regras liberais, mantendo-se as políticas monetária e fiscal. A política cambial foi modificada, com a introdução, em 1968, do programa das minidesvalorizações. Mas, desenvolvendo-se mais ou menos a mesma política, conseguiu-se reduzir a taxa de inflação, que já no período Bulhões-Campos vinha caindo. De uma perspectiva de 120%, a inflação caiu para 80%, depois para cerca de 50%, para 20% em 1972, e 15% no período 1973-1974. Foi um tremendo resultado! Pode-se dizer que as duas administrações foram bastante complementares.

Apesar do depoimento de Galvêas apontar os acertos do regime autoritário de uma maneira pouco distante, algumas das suas considerações contribuem para explicar os momentos distintos da economia brasileira entre meados da década de 1950 até a entrada da década de 1970 numa política que combina desregulamentações e liberalizações do mercado financeiro e do comércio com um dirigismo estatal através da criação de empresas e investimentos públicos a partir da tomada de crédito internacional em grande escala. E foi a partir dessas mudanças na organização da economia política brasileira que o Banco Central prepara o terreno para organizar a administração do déficit público e a própria dívida pública no interior de uma instituição tecnocrática financeira que se aperfeiçoa com a chegada do FED (Federal Reserv) dos EUA.

Segundo a Coleção História Contada do Banco Central do Brasil V. 6 (2019, p. 84):

A equipe do Banco Central permaneceu a mesma? Nada mudou na equipe do Banco Central, com exceção do Carlos Brandão, que eu trouxe da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac). Era um homem do [Ignácio] Tosta Filho, que também foi diretor da CACEX, e muito organizado, muito disciplinado, muito criativo. Então, resolvi trazê-lo, mesmo não sendo economista, porque havia vários economistas no Banco Central, mas nenhum com o perfil que me parecia adequado para reorganizar o problema da dívida pública. Achei que, embora ele não fosse economista, eu poderia prepará-lo e, com o tempo, ele acabaria aprendendo as coisas do mercado. Mas era um grande disciplinador, tinha um bom comando sobre os funcionários, e tudo isso eu vi nas diversas vezes em que nos encontramos nas visitas que fiz à Bahia, a Ilhéus, a Itabuna, onde ele trabalhava, cuidando de cacau. Bom, trouxe o Brandão para o Banco Central em princípios de 1969, e começamos a fazer uma reorganização. Organizamos a biblioteca de mercado aberto, preparamos os funcionários, demos cursos, trouxemos economistas do Fed dos Estados Unidos e do Banco da Inglaterra para fazer conferências no Banco Central. À medida que íamos preparando o pessoal, preparávamos também o Carlos Brandão, que estava vendo essas coisas pela primeira vez, mas mostrou uma grande capacidade de adaptação e enorme entusiasmo pelo trabalho. Começamos a fazer uma experiência com os dealers, nomeamos 30 dealers no mercado, corretoras, distribuidoras e bancos, para comprar os papéis públicos.

E ainda (2019; p. 85):

Nós tínhamos de anunciar a colocação dos papéis com prazo decorrido e fornecer uma tabela de taxas de juros, para eles poderem comprar. Em muitos casos, garantíamos a recompra. Quer dizer, nós preparamos o mercado. De fato, começaram a surgir funcionários com maior conhecimento em matemática, foram aprendendo o mecanismo, e nós também ganhamos uma experiência suficiente para separar o mercado: o que era déficit público que precisava ser financiado com Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), e o que era política monetária que deveríamos fazer com um papel diferente. Foi quando criamos as Letras do Tesouro Nacional (LTNs). Isso foi em 1969. Aí já começamos, dentro de uma teoria econômica de política monetária, a trabalhar com dois papéis: “Vamos financiar o déficit público vendendo ORTNs com correção cambial, e vamos realizar uma política de curto prazo de enxugar ou expandir os meios de pagamento com operações de open market [mercado aberto],

Essa passagem do depoimento de Ernane Galvêas explica de maneira clara a relação de proximidade entre o imperialismo estadunidense e britânico quando da chegada de tecnocratas vindos desses países para oferecer o treinamento em técnicas do mercado financeiro e lançar serviços mais sofisticados para esse mercado. Técnicos brasileiros em “mercado aberto” foram formados a partir dessa parceria com os bancos centrais dos EUA e da Inglaterra e aperfeiçoamentos de gestão na política monetária foram feitos.

As negociações com títulos públicos e letras do Tesouro Nacional como formas de financiar o déficit público e a própria administração da dívida pública foram conduzidas de uma maneira mais técnica a partir da década de 1970, principalmente num momento que a economia brasileira começava a experimentar a sua fase de maior crescimento econômico; a despeito da austera política de arrocho salarial e da manutenção de enormes incentivos fiscais aos industriais e a classe dominante doméstica e transnacional. De um lado uma necessidade de aperfeiçoamento técnico por parte dos gestores da política econômica e de outro a continuidade dos mecanismos costumeiros da burocracia estatal autoritária, com suas práticas e atores políticos preferidos.

Como foi presidente do Banco Central por duas vezes e ministro confiável da ditadura, o político e tecnocrata Ernane Galvêas apresenta a face mais perversa da ditadura, que frequentemente sempre aderiu ao imperialismo, com sua política econômica e diversos braços institucionais tecnocráticos a favor do capital privado nacional e principalmente estrangeiro. Essas passagens que revelam como funciona o esquema de concentração de poder através dos braços do imperialismo comprovam que a ditadura de nacionalista nem se quer deveria passar pelo pensamento daqueles que ainda tinham uma ilusão histórica sobre os caminhos do país na década de 1970.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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