O processo eleitoral presidencial nos EUA é uma amostra da grande decadência do imperialismo norte-americano “democrático” de forma explícita. Já se passaram vários meses desde que Kamala Harris foi lançada como a grande esperança do Partido Democrata, substituindo o caquético Biden. Como um efeito especial de Hollywood, o pretenso brilho e novidade da candidata se evaporou. Estão claras suas viscerais vinculações com o genocídio em Gaza e, mais recentemente, a tentativa de invasão do Líbano.
Harris não consegue se conectar com uma grande parte da juventude e da classe trabalhadora norte-americanas, que sofreram com as políticas capitalistas e imperialistas do governo Biden-Harris. Nunca se sentiu tão fortemente nos Estados Unidos a falta de uma real alternativa de esquerda, de um partido que represente a maioria da população contra o sistema corrupto e violento, controlado por meia dúzia de grandes bilionários. A rejeição não é só ao fascista Trump, mas igualmente aos Democratas, que prometem mais genocídio, mais ataques às conquistas sociais e políticas dos trabalhadores e uma linha mais dura na imigração.
Kamala Harris não cumpre nenhuma das promessas do início do Governo Biden, que hoje parecem mais cínicas do que quando foram feitas: extensão do Medicare, 15 dólares por hora, anulação da dívida estudantil, melhoria dos direitos sindicais, fim das políticas racistas e defesa efetiva dos direitos das mulheres. Kamala mostra-se uma direitista que busca atrair parte do eleitorado supostamente insatisfeito com seu candidato.
Uma enorme polarização está varrendo os EUA, e não é entre Trumpistas e Kamalistas. O regime decrépito é cada vez mais rejeitado de conjunto, seja por uma onda direitista que atrai parte das classes médias, seja por uma radicalização à esquerda, com a mobilização e a auto-organização de milhões de trabalhadores, jovens e mulheres. A estratégia de Trump de capitalizar o descontentamento que os democratas alimentaram com suas políticas pró-Wall Street, pró-Silicon Valley, pró-Zelenski e pró-Netanyahu parece ter resultados muito mais sólidos. Trump é, à sua maneira, um homem do sistema. Tem o apoio de uma parte importante da classe dirigente, como os chefes de Blackstone e Starlink, do poder judicial e do aparelho de Estado.
Trump é, por outro lado, o representante máximo da decadência do sistema e da decomposição social. No desespero e no pânico que se apoderou de largas camadas das classes médias arruinadas, de pequenos e médios empresários que se assentam na superexploração de sua mão de obra e que veem na mobilização da esquerda, da juventude, da comunidade negra, dos migrantes ou das mulheres os culpados de seus pesadelos, e também de setores da classe trabalhadora que viram nas promessas dos democratas e da nova esquerda uma grande fraude. Essa escória social é que alimenta o ódio aos imigrantes e àqueles que lutam contra o sistema, sonhando com os “tempos áureos” da época em que os EUA eram o polo hegemônico e não eram assediados pela ascensão da China.
A grande polarização
O problema é que os democratas aceitaram essa lógica e aplicaram-na à perfeição. E a “nova esquerda” de Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez deu cobertura de esquerda às políticas reacionárias de Harris e Biden, bloqueando a mobilização de rua e dando aval a todas as suas políticas nefastas, incluindo o genocídio em Gaza.
A enorme polarização que está varrendo a principal potência mundial tem duas faces. Contra esse sistema putrefato, está se construindo uma corrente de opinião de esquerda, com a mobilização e a auto-organização de baixo, conduzida por aqueles que estão liderando manifestações de massa contra o genocídio sionista, aqueles que encheram as ruas contra o racismo institucional e o assassinato de George Floyd, e aqueles que estão construindo um movimento sindical que está obrigando gigantes como Amazon, Google e Boeing a fazer concessões. Um exemplo disso é a greve que envolveu quase 50.000 trabalhadores portuários da Costa Leste, algo inédito desde 1977. Um conflito por condições de trabalho e salários dignos que confronta a burguesia, a burocracia sindical e os partidos burgueses.
Já há todo um movimento em busca de uma alternativa partidária dos trabalhadores, inclusive no seio do próprio movimento sindical, e o surgimento de novos partidos socialistas e comunistas. Pela primeira vez em muitas décadas, há um enorme potencial para construir uma organização que defenda um programa socialista, que se enraíze entre a juventude e a classe trabalhadora, em seus bairros e locais de trabalho, em suas escolas, e que não confie nem nos tribunais nem nos parlamentos burgueses. Um partido dos trabalhadores e dos oprimidos dos Estados Unidos que lute nas ruas para defender o programa da revolução socialista.
O elitista sistema político norte-americano
A lenda de que os EUA são uma democracia se choca com a realidade de um sistema elitista e conservador, que preserva estruturas políticas em que vigoravam a escravidão e o colonialismo. Para quem quer acabar com esse sistema injusto e autoritário, é absolutamente essencial entender suas complexidades. Sabemos que esse sistema tem que acabar, e para realmente realizar essa profunda transformação da sociedade, precisamos saber em detalhes como ele opera.
Quando desvendamos a farsa das eleições presidenciais dos Estados Unidos, é fácil ver que todo o sistema eleitoral dos EUA não foi criado para ampliar a participação popular, mas para garantir que a classe dominante seja protegida dela através do Colégio Eleitoral.
Um sistema criado pelos proprietários de escravos
Os homens que criaram o governo dos EUA não tinham nenhum respeito pelo povo, descrevendo os trabalhadores como desagradáveis, turbulentos e uma série de outros insultos de baixo calão. Embora os “pais fundadores” estivessem mais ou menos unidos na decisão de que não poderiam permitir que os trabalhadores tivessem voz em seu próprio governo, eles ainda precisavam de uma forma de escolha de líderes que desse alguma ilusão de imparcialidade e justiça. Hamilton apresentou sua ideia para o método de eleição do presidente: o Colégio Eleitoral.
Hamilton via o Colégio Eleitoral como uma forma de garantir que as “pessoas certas” selecionassem o presidente, ou seja, colocaria o poder de escolher o presidente nas mãos de pessoas que faziam parte da classe dominante, isolando o processo eleitoral dos “calores e fermentos” do povo comum. Um corpo intermediário de eleitores seria muito menos apto a convulsionar a comunidade com quaisquer movimentos extraordinários ou violentos. E como os delegados, escolhidos em cada estado, devem se reunir e votar no estado em que são escolhidos, essa situação os exporá muito menos aos calores e fermentos que poderiam ser comunicados por eles ao povo, do que se todos fossem convocados ao mesmo tempo, em um só lugar.
Várias outras ideias surgiram para construir a “democracia” norte-americana, mas poucos defenderam o sufrágio universal. No entanto, somente o Colégio Eleitoral satisfez os membros mais poderosos da classe dominante da época: os proprietários de escravos. O Colégio Eleitoral também teve o benefício de não depender dos votos da população trabalhadora, que, independentemente da raça, geralmente era contra a escravidão. Por muitos anos, os eleitores presidenciais não assumiram uma posição partidária e não se comprometeram a votar em nenhum candidato específico. Essa formulação se alinhou com a concepção de Hamilton de um Colégio Eleitoral composto por homens educados e de pensamento livre que deveriam tomar suas próprias decisões para presidente “com o apoio da população”.
O que é o Colégio Eleitoral?
É um sistema que impede a população trabalhadora de votar diretamente em um candidato presidencial nas eleições gerais. A população vota nos eleitores presidenciais indicados pelo partido ou órgão ao qual pertencem os candidatos presidenciais e vice-presidenciais. A Constituição estabelece uma verdadeira balbúrdia e confusão sobre a forma pela qual eles são escolhidos em cada estado. Em alguns estados, os eleitores são escolhidos em convenções partidárias; em outros, os candidatos presidenciais e vice-presidenciais escolhem diretamente os eleitores para sua cédula. Muitos estados empregam um sistema em que o vencedor leva tudo para eleger eleitores presidenciais. Kentucky e Maine usam um sistema de nível distrital.
Uma vez que os votos para os eleitores presidenciais são contados, o governador de cada estado prepara um certificado de verificação que inclui o nome de todos os eleitores individuais, com qual candidato esses eleitores estão comprometidos, e a contagem de votos para cada eleitor presidencial. Os governadores de cada estado enviam esses certificados ao Federal Register Office, parte dos Arquivos Nacionais, para recebimento pelo Arquivista Nacional.
Em meados de dezembro, um mês após a “eleição”, os eleitores presidenciais vencedores se reúnem em um local designado em seus respectivos estados para votar. Isso é feito preparando um “certificado de voto” que designa o destinatário do voto de cada eleitor e é assinado por esse eleitor. Esses certificados são enviados ao Presidente do Senado dos EUA (ou seja, ao Vice-Presidente), ao Arquivista dos EUA, ao Secretário de Estado de cada estado e ao Juiz Chefe do Tribunal Distrital Federal do distrito em que os eleitores se reuniram em cada estado. Finalmente, todos os anos, em 6 de janeiro, dois meses após a “eleição”, os votos eleitorais são finalmente contados. O vice-presidente preside essa contagem de votos na presença do Congresso e certifica oficialmente os resultados das eleições.
Quanto poder tem um eleitor?
O Colégio Eleitoral dá pesos muito diferentes ao voto de uma pessoa, dependendo do estado em que o eleitor mora. Os votos eleitorais são iguais à soma do número de representantes na Câmara dos Representantes e do número de senadores de cada estado. Portanto, os estados com uma população menor obtêm mais votos eleitorais em relação à sua população, pois cada estado recebe dois senadores, independentemente do tamanho do estado. Como resultado, o estado com a população mais baixa, Wyoming, recebe um voto eleitoral para cada 195.000 residentes, enquanto a Califórnia recebe um voto eleitoral para cada 712.000 residentes. O voto de uma pessoa que mora em Wyoming é quase 3,5 vezes mais poderoso do que o voto de alguém da Califórnia!
Além disso, é cada vez mais comum que presidentes sejam eleitos sem alcançar a maioria dos votos populares. Dois dos últimos seis presidentes, George W. Bush em 2000 e Donald Trump em 2016, assumiram o cargo com menos votos do que seus oponentes. De fato, em 2000, o resultado da eleição foi decidido por cerca de 500 votos na Flórida.
Nenhuma lei federal afirma que os eleitores presidenciais devem votar nos candidatos presidenciais e vice-presidenciais a quem se comprometeram e, de fato, a maioria dos estados não exige que os eleitores presidenciais votem no candidato de cuja lista fazem parte. Esses eleitores, que são nomeados e eleitos como parte de uma lista, mas depois votam em diferentes candidatos no Colégio Eleitoral, são conhecidos como “eleitores infiéis”. As leis relativas a eleitores desleais variam muito de estado para estado, com alguns estados invalidando votos ou multando eleitores, enquanto outros não penalizam um eleitor infiel de forma alguma.
Todo o poder emana do capital
O típico sistema de alocação de votos eleitorais em cada estado garante a dificuldade de ganhar impulso para qualquer partido ou candidato que não pertença a um dos dois partidos capitalistas da classe dominante. A capacidade dos estados de regular as eleições de forma independente garante que os partidos independentes tenham que navegar por uma vasta rede de leis e procedimentos, que são diferentes em cada estado, para obter acesso à cédula. Mas, mesmo quando conseguem entrar com sucesso na cédula, o Colégio Eleitoral permanece como um obstáculo final para a representação nacional. A classe dominante, embora geralmente elogie o sistema democrático dos Estados Unidos, une forças a cada temporada eleitoral para garantir que um de seus dois partidos prevaleça como vencedor.
Hoje, o Colégio Eleitoral continua a garantir que os resultados das eleições sejam decididos em um punhado dos chamados “estados indecisos”. Em 2024, democratas e republicanos estão lutando quase inteiramente nos estados da Geórgia e da Pensilvânia. O Colégio Eleitoral garante que não apenas os principais partidos não farão campanha em estados onde vivem dois terços da população, mas que o resultado geral da eleição dependerá apenas de algumas dezenas de milhares de votos de residentes de alguns condados em ainda menos estados.
Enquanto os republicanos se preparam para outro desafio à legitimidade da contagem de votos em 2024, os democratas recorreram a ataques diretos ao acesso às cédulas partidárias independentes como estratégia para ganhar os votos eleitorais mais importantes na Geórgia e na Pensilvânia. Tradicionalmente, a exigência de listas de assinaturas tem sido o método preferido de manter os partidos independentes fora da cédula. Curiosamente, essa estratégia parece estar mudando. Os desafios de acesso às cédulas em 2024 na Geórgia e na Pensilvânia foram baseados quase exclusivamente não em questionamentos de assinaturas ou invalidando os próprios candidatos presidenciais e vice-presidenciais, mas na elegibilidade dos eleitores indicados por cada partido alternativo. Se o sistema é tão democrático, por que importa quem serve como eleitor?
Reformar o Colégio Eleitoral?
O Colégio Eleitoral não aparece na TV. Toda parafernália midiática só reporta a campanha eleitoral e a eleição fictícia. O Colégio Eleitoral não merece uma cobertura, ou alguma entrevista com os reais eleitores. Ele precisa funcionar escondido. E não é à toa que toda conspiração trumpista se dirigiu apenas e centralmente para manipular os votos dos reais eleitores do Colégio Eleitoral. É um sistema que não deve ser reformado, mas sim destruído. A questão é saber se a república burguesa norte-americana vai sobreviver até mesmo para tentar substituir o Colégio Eleitoral pelo sufrágio universal. Provavelmente, uma revolução social nos EUA não vai parar em reformas do sistema burguês. As demandas por mudanças do sistema eleitoral em nível nacional continuam a prosperar, incluindo demandas por um voto popular nacional e votação por classificação. Por outro lado, a classe dominante continua defendendo totalmente o Colégio Eleitoral, porque sabe que em um sistema verdadeiramente democrático seus dias no poder estariam contados.