Grande parte do problema com as ações da esquerda pequeno-burguesa após o ato bolsonarista em 8 de janeiro de 2023 é sua caracterização errada do acontecimento. Esse setor da esquerda considera que foi uma tentativa de golpe fascista derrotada. Esse Diário já publicou um artigo explicando o porquê dessa tese estar completamente errada. E para melhor compreensão de que o 8 de janeiro não foi um golpe fascista baste comparar o acontecimento aos golpes fascistas bem sucedidos e também aos derrotados.
Primeiro vale discutir um caso que seria análogo ao que essa esquerda afirma sobre o 8 de janeiro: o golpe da cervejaria de Munique organizado por Adolf Hitler, e que foi derrotado em 1923. Em meio a uma grande crise econômica e política que vivia a Alemanha após ter sido derrotada na Primeira Guerra Mundial, o Partido Nazista foi fundado e cresceu. Ele se organizava politicamente e nas ruas possuía milícias armadas principalmente para atacar a esquerda e os trabalhadores, mas que foram usadas também de base para a tentativa de golpe.
O golpe foi organizado com uma marcha de mais de dois mil nazistas, em grande parte armados. O governo na época era do Partido Social-Democrata, os socialistas, que mandaram a polícia para impedir a manifestação de avançar sobre os prédios do governo. Isso gerou um confronto que terminou com ao menos 16 mortos do lado dos nazistas e quatro mortos do lado da polícia, além de muitos feridos. Todas as lideranças da tentativa de golpe, incluindo o próprio Hitler, ou foram presas, ou fugiram da Alemanha. A sede do Partido Nazista foi invadida e seu jornal proibido de circular.
Essa é uma tentativa de golpe real que foi derrotada com uma repressão real. Caso não houvesse a atuação a polícia, os nazistas teriam derrubado o governo da Baviera como uma forma de iniciar a derrubada do governo central da Alemanha. O interessante é que a derrota do golpe se deu por meios institucionais e não pela luta dos trabalhadores. Hitler ao ser preso se tornou uma figura muito popular, seu partido cresceria cada vez mais e, com o apoio da burguesia alemã, tentaria outro golpe de Estado 10 anos depois, dessa vez com sucesso. Em 1923 a burguesia não queria Hitler e impediu o golpe, em 1933 ela entregou o governo para os nazistas.
É interessante comparar esse caso com o da França, onde os fascistas foram derrotadas não pelo governo, mas sim pela mobilização dos trabalhadores. Em 1934, os fascistas franceses, inspirados na vitória de Hitler, organizaram um golpe de Estado. O governo francês estava em uma enorme crise política e a Liga da Extrema Direita organizou uma manifestação em direção ao Palácio Concorde, assim como a manifestação de Hitler ela se enfrentou com as forças policiais, o que gerou 14 vítimas do lado dos fascistas e uma do lado dos policiais, foram mais de mil feridos, desses morreram mais quatro nos dias seguintes. A extrema-direita então começou a organizar atos ao mesmo estilo a cada dois dias na tentativa de derrubar o governo. Eis que a classe operária entra em ação.
A crise se iniciou no dia 6 de fevereiro, já no dia 9 a esquerda convocou uma manifestação contra o fascismo. No dia 12 as centrais sindicais Confederação Geral do Trabalho e a Confederação Geral do Trabalho Unitária organizaram uma greve geral contra o golpe fascista. Essa mobilização operária foi tão forte que, na prática, derrotou o fascismo na França. Ela levou à criação da Frente Popular que venceu as eleições em 1936, o que levaria a mais uma gigantesca greve geral, dessa vez abertamente revolucionária. Nessa conjuntura o fascismo desapareceu completamente. Nesse caso o golpe fascista foi derrotado de fato por meio da mobilização da classe operária. Foi necessária uma invasão fascista da Alemanha para esmagar a classe operária francesa.
Por fim, vale a pena analisar o golpe fascista do Chile em 1973, ainda mais parecido com a conjuntura brasileira por ser um país latino-americano. No Chile, após a eleição de Allende o imperialismo lançou a extrema-direita nas ruas como base de apoio do golpe de Estado. A principal força, no entanto, eram os próprios militares e um momento que é pouco lembrado é a tentativa de golpe em junho de 1973, quando os tanques atacaram o palácio do governo. A classe operária saiu às ruas contra o golpe de Estado, isso pressionou o comando das forças armadas a combater o golpe, que foi derrotado.
Nessa conjuntura os trabalhadores no entorno do palácio do governo gritavam para o presidente “mão de ferro!” e “feche o Congresso” (que estava participando ativamente do golpe). Allende não tomou nenhuma iniciativa, pelo contrário aumentou a repressão pedindo o desarmamento de todos, inclusive dos trabalhadores que apoiavam seu governo. Passados poucos meses, o general Pinochet, que era apresentado como grande democrata legalista, indicado por Allende ao comando das Forças Armadas, protagonizou um dos golpes militares mais violentos do século XX.
Esse caso é interessante por dois motivos. Primeiro, pois mostra como funciona um golpe fascista a América Latina: ele precisa ser derrotado pela mobilização dos trabalhadores. Segundo, mostra que em uma conjuntura golpista o seu maior inimigo são justamente aqueles que se apresentam como os “aliados democratas”. Isso aconteceu tanto no Chile quando no golpe de Hitler em 1933, o “aliado democrata” se chamava Hindenburgo: ele convidou Hitler ao governo. A história da luta dos trabalhadores contra o golpe não só demonstra o que é ou não é de fato um golpe fascista. Ela também mostra qual é o grande erro da esquerda que leva ao golpe, um erro que está sendo cometido no Brasil nos dias de hoje.