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Coluna

As histórias em quadrinhos de Miguel Rocha

Contestações ao conservadorismo português

Em minha estadia em Portugal durante o segundo semestre de 2013, certa tarde, passando pela Universidade de Lisboa, deparei-me, na livraria, com algumas HQs; entre elas, três eram da autoria de Miguel Rocha: (1) “Hans – O cavalo inteligente”; (2) “Malitka”, em parceria com Francisco Oliveira; (3) “As pombinhas do sr. Leitão”.

Contrariamente a “Black Hole” e a “A contorcionsia – manifesto”, comentadas na coluna da semana passada, Miguel Rocha me parece um escritor a dialogar, explicitamente, embora se contrapondo, com a cultura tradicional portuguesa. Certamente, acompanhando a citação do próprio autor em “As pombinhas do sr. Leitão”, fiz relações entre ele e Júlio Dinis, autor de “As pupilas do senhor reitor” e “A morgadinha dos canaviais”. Além disso, “Hans – O cavalo inteligente” se passa na Europa e em “Malitka”, apesar de não haver referências a lugares específicos, recorre-se ao vocabulário da língua coloquial portuguesa. Assim, para prosseguir, não analiso a obra de Miguel Rocha em pormenores; pretendo, somente, comentar três aspectos, um de cada HQ mencionada antes, pois minha intenção se resume, antes de tudo, em chamar a atenção para a qualidade das obras.

(1) o “movimento de câmera” na parte I de “Hans – O cavalo inteligente”

O argumento de “Hans – O cavalo inteligente” é adaptado da peça, com o mesmo nome, de Francisco Campos. A trama parece pesadelo; nela, Hans, um cavalo que supostamente sabe falar, encontrando-se, em decorrência disso, constantemente obrigado a dizer alguma coisa, malgrado permaneça calado durante toda a história. Do muito que se poderia comentar a respeito desse trabalho, escolhi somente um detalhe técnico, ou seja, o modo como um único quadrinho se repete, com algumas variações, em muitas páginas, encaminhando, a cada repetição, novos sentidos.

Dessa forma, no primeiro capítulo da HQ, o quadrinho em que uma plateia espera pelas palavras do cavalo se repete integralmente 8 vezes e, em fragmentos, 4 vezes. Nessa configuração, em 4 quadrinhos ocorrem aproximações em direção ao fundo da cena, revelando que os espectadores e o animal se encontram, entre esqueletos e corpos conservados, em um laboratório ou museu biológico; a cada ocorrência, a plateia renova as questões ao cavalo, respondidas, invariavelmente, pelo apresentador, o dono de Hans. Nessa retórica, paradoxalmente, os rumos divergentes da narrativa são colocados xeque, pois na cena – vale lembrar, sempre a mesma –, a plateia, apesar das perguntas, não se altera. Desse modo, o significado se concentra na inserção de todos em um laboratório sinistro, no qual, preservados em formol ou empalhados, ninguém parece vivo. Além disso, a plateia se vê, pelo menos, de duas perspectivas: (1) a do cavalo, quem observa a tudo calado; (2) a do leitor, quem se identifica, consequentemente, com Hans. Enfim, em termos de linguagem dos quadrinhos, as soluções gráficas tanto da descrição da cena inicial quanto da manipulação do leitor revelam-se excelentes; trata-se de uma solução narrativa promovendo estranhamentos numa história estranha.

(2) “Malitka”, uma morgadinha na cidade grande

Em “Malitka”, Miguel Rocha e Francisco Oliveira, coautor da história, não aludem ao romance de Júlio Dinis, “A morgadinha dos canaviais”; contudo, tal relação permite comparar a mocinha da HQ com a do romance, contrastando, em vista disso, duas imagens da mulher portuguesa. No romance de Júlio Dinis, em linhas gerais, narram-se os desencontros românticos de dois casais; entre os quatro jovens, destaca-se Madalena, a herdeira do morgado, ou seja, dos bens da família. Madalena é bondosa; com a amparo da igreja, ela termina feliz, completamente inserida, por meio do casamento e da propriedade privada, nos valores conservadores da burguesia. Nos quadrinhos de Rocha e Oliveira, contrariamente, Rute é uma adolescente vivendo entre o amor livre e a prostituição; certo dia, ela assassina o pai com um prato de sopa envenenado. Na trama, supõem-se explicações para o crime; entre elas, Rute sofreria abuso infantil pelo próprio pai. No final da HQ, Rute se encontra detida em uma instituição psiquiátrica, pois nem sua mãe acredita nela; infelizmente, a mocinha morre vítima da aids, alucinando em delírios religiosos de purgação e culpa até receber, em agonia, a visita do anjo da morte.

Em síntese, Rute manifesta o espelhamento invertido de Madalena. Dessa maneira, longe do morgado, a herança de Rute é o abuso sexual; nesse contexto, o Deus de Madalena recompensa em vida enquanto o de Rute tem somente a morte para oferecer. Em suas denúncias, Rocha e Oliveira expressam a sordidez escondida por trás dos valores cristãos e moralistas regentes da vida da protagonista, inclusive na hora da morte, que não parece transcendental, mas delirante, pois a moça delira imersa na loucura e no cristianismo; na passagem citada, quem carrega a menina, de fato, é o enfermeiro, com o anjo se configurando outro fruto da loucura.

(3) a mulher rumo ao paganismo em “As pombinhas do sr. Leitão”

Nessa HQ, mediante uma personagem feminina, isto é, a moça sem nome e única revolucionária da história, Miguel Rocha encaminha apologias do paganismo de encontro aos valores cristãos. Na trama, em uma província portuguesa, vive o sr. Leitão, paródia do célebre sr. Reitor, do romance “As pupilas do sr. Reitor”, de Júlio Dinis; o sr. Leitão, no entanto, longe do bondoso senhor Reitor, surge como um típico “canalha” … mais do que isso, ele o é típico “canalha salazarista”. O sr. Leitão, um hipócrita, esconde a concupiscência com moralismos cristãos; na história, o Leitão se interessa pela moça sem nome, quem surge na cidade, misteriosamente. Ela não fala, ninguém sabe de onde veio; para viver, ela trabalha na bodega, onde Leitão almoça todos os dias. Certo dia, em nome da moral, o Leitão a leva para a própria casa, mas as intenções, no entanto, apontam para o assédio moral e sexual; para tanto, Leitão inventa falsas denúncias contra os donos da bodega, delatando-os falsamente à polícia política e, raptando a moça misteriosa, o moralista a mantém, amarrada nua e presa num quarto, em cárcere privado.

No final, em meio às perseguições causadas pelos policiais, a moça foge enrolada numa cortina, enquanto os donos da bodega se encontram na iminência de linchar o Leitão. O porco fascista, todavia, escapa quando um mendigo, inadvertidamente, lança sobre ele milho e os pombos, em busca dos grãos, pousam sobre o pobre diabo, levando a maioria a tomar o fato por milagre. Assim, salvo pela sorte – antes de tudo, salvo pela ignorância –, o sr. Leitão escapa ileso e, até mesmo, santificado pela população, enquanto a moça muda, contrariamente, termina presa pela polícia política porque estava descalça. Isso mesmo, não porque fugia quase nua, vítima de sequestro, mas porque estava, simplesmente, descalça.

Em cena anterior, quando Leitão leva a moça para sua casa, antes de entrar, ele a ordena a tirar os sapatos, pois seria um costume seu; todavia, Leitão continua calçado enquanto a moça não possui do que se livrar, pois já vinha descalça. Isso, em princípio, parece apenas um detalhe; ao longo da HQ, o sr. Leitão nem mesmo expressa fetiche por pés, orientando seus desejos para roupas íntimas e saltos altos. Contudo, no final, o fato soa ironicamente quando a polícia, sem motivos para prender alguém, inventa, arbitrariamente, um motivo sem importância e, antes de tudo, ilegal, já que não se infringem as leis por, apenas, seguir descalça em público. Na trama, entretanto, a moça muda e descalça mostra-se a única personagem a não participar, feito as demais, dos valores cristãos; por isso mesmo, não nos arriscamos a encontrar nela expressões do paganismo. Dessa maneira, enquanto sacerdotisa telúrica, a mulher misteriosa, com os pés descalços, conectar-se-ia diretamente com a Terra, atualizando simbolismos e práticas avessas ao cristianismo; descalça, ela se aproxima das bruxas e das ciganas, logo, dos anticristãos.

Por fim, na sociedade fascista, representada por Leitão, a mulher termina condenada; não há escapatória, seja ela Rute, na cidade grande, seja ela uma desconhecida, perdida por Portugal.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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