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José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Argentina: como demolir a economia e esmagar toda uma população

"Se o programa destrutivo de Milei, de alguma forma, conseguir se sustentar na Argentina, ele servirá de modelo para todo o subcontinente"

A atividade econômica na Argentina recuou 1,4% em março, segundo dados do Estimador Mensal de Atividade Econômica (Emae), do INDEC (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos). Na comparação com março de 2023, a retração da atividade econômica alcançou 8,4%. Das 15 categorias econômicas da pesquisa, nove apresentaram recuo em março, com destaque negativo para Construção, com queda de 29,9% e Indústria, que perdeu 19,6%, na comparação com março do ano passado.  Na análise anual, entre os seis setores que apresentaram alta na atividade, destaque para Agricultura, pecuária, caça e silvicultura (+14,1%) e Mineração (+5,9%). O Comércio atacadista e varejista também recuou -16,7%, na comparação anual, o que indica a gravidade do processo recessivo. 

A economia argentina combina uma das mais graves recessões do país, com inflação muito alta, 8,8% em abril, segundo o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) divulgado pelo INDEC. Em 12 meses até abril a inflação do país acumula 289,4%, a mais alta entre os países no mundo, apesar da destruição do poder de compra de aposentados, trabalhadores em geral, e da destruição das pequenas e médias empresas. No segundo lugar desse ranking das maiores inflações está a Turquia, com acumulado anual significativamente mais baixo (68,5%). Mas há aqui uma diferença central em relação à situação da Argentina: a economia turca vem crescendo em patamares bastante razoáveis, considerando a situação internacional. Em 2023, o país ficou na segunda posição de crescimento, no G20, com 4,5%, atrás apenas da China, que expandiu 5,2%. Em 2023, ao contrário, o PIB argentino recuou 1,6%.

O fato de que a inflação argentina em abril desacelerou pelo quarto mês consecutivo, que foi comemorado pelo governo Javier Milei, na verdade, indica o óbvio: o empobrecimento em tempo recorde da maioria da população do país. De acordo com o Observatório Social da Universidade Católica Argentina, ainda em janeiro, 57,4% da população vivia abaixo da linha da pobreza, maior índice em 20 anos na pesquisa, o equivalente a 27 milhões de pessoas. 

O apoio do imperialismo e das classes dominantes argentinas, a um lunático, que não fala coisa com coisa, e diz fazer reuniões regulares com um cachorro falecido, deve ser compreendido à luz de uma situação mundial extremamente complexa. Neste momento de crise de hegemonia do imperialismo norte-americano no mundo, a América Latina é uma região especialmente visada. Além das razões geopolítica, também por seus recursos naturais: grande quantidade de terras raras, triângulo do lítio (Bolívia, Argentina, Chile), maiores reservas de petróleo do mundo (incluindo o pré-sal no Brasil), imensas reservas de ouro e cobre, os imensos recursos da Amazônia. Por exemplo, 30% da água doce do mundo localiza-se nessa região, o que explica muito da voracidade das multinacionais em relação ao subcontinente. 

O ano de 2023 foi o pior para o imperialismo como um todo, em muitas décadas, com significativas derrotas e crises em várias partes do planeta. Neste contexto, o império norte-americano precisa se fortalecer na região que considera seu “pátio dos fundos”, a América Latina. É nesse pano de fundo que a situação da Argentina deve ser compreendida. O governo de Javier Milei provocou, já no primeiro dia, uma desvalorização cambial de 115%, que desde então, vem destruindo o mercado consumidor interno. Apenas com esta medida, o governo prejudicou o poder aquisitivo de cerca de 70% da população argentina, e sem nenhuma espécie de contrapartida. A queda do nível de atividade da economia argentina não foi um acidente, mas uma estratégia: provocar uma recessão brutal, reduzindo a inflação pela perda de poder de compra da população, ou seja, pela dor. 

O DNU (Decreto de Necessidade de Urgência), o super decreto de Milei, que continha originalmente 366 medidas – na prática, uma profunda mudança constitucional feita por canetada – e aprovado em boa parte, representou também a transformação da Argentina em um depósito de recursos naturais, colocado à disposição do sistema financeiro e dos grandes capitalistas mundiais. Desde o início, o governo Milei, com o apoio do empresariado nacional, deixou claro que estava disponibilizando todos os recursos naturais e as estatais da Argentina, para a pilhagem internacional. 

O DNU, aprovado pelo Congresso em março último, modificou ou revogou mais de 350 normas na lei argentina. Ele foi elaborado, em cerca de um ano e meio, por um grupo de profissionais ligados aos grandes grupos econômicos que atuam na Argentina. Em cada cláusula do Decreto, está contemplado os interesses dos grandes grupos econômicos que dominam a economia argentina. São cláusulas com nome e sobrenome de interesses de grandes grupos empresariais, especialmente os estrangeiros. Isso explica o apoio da burguesia a Milei, apesar deste estar conduzindo a economia em direção ao abismo. 

É conhecido que Argentina, Bolívia e Chile compõem o Triângulo do Lítio, que detém 60% das reservas mundiais deste mineral, segundo o Serviço Geológico dos EUA (USGS). O lítio, que tem várias aplicações, é fundamental, por exemplo, para a indústria de automóveis elétricos, carro chefe da Tesla. Já como presidente eleito, Milei anunciou orgulhoso que Elon Musk ligou para ele, altamente interessado nas reservas de lítio que a Argentina dispõe. Estava muito satisfeito com o interesse do dono da Tesla, e do governo dos EUA nas reservas do mineral estratégico.

Alguns representantes do capital norte-americano, ou mesmo do governo dos EUA, costumam se referir aos recursos existentes nos países latino-americanos, como se lhes pertencessem. Em 2020, o próprio Elon Musk, se referindo à Bolívia, escreveu em sua conta no Twitter: “Vamos dar golpe em quisermos. Lide com isso”! A frase foi uma resposta às denúncias de que os EUA estiveram por trás do golpe na Bolívia em 2019, inclusive com interesse de Musk, em função das reservas de lítio, metal fundamental para as baterias que movimentam os veículos da Tesla e de outras empresas do setor. 

Uma das medidas contidas no DNU possibilita que estrangeiros poderão adquirir terras na Argentina sem restrições. Até então, o máximo permitido a um estrangeiro era comprar 15% da área de um município, de uma província ou do país. A cláusula não está ali por acaso, a Argentina é conhecida por suas zonas de terras extremamente férteis, principalmente na região pampeana, área que abrange cidades como Buenos Aires, Santa Fé, Rosário e Baía Blanca.

Atualmente a Argentina é uma espécie de laboratório de uma política de perda de direitos e de poder aquisitivo, que nunca foi vista no subcontinente, em período algum. Possivelmente nunca foi vista no mundo, exceto, talvez, em situações de guerra. O governo Javier Milei já enviou mais de mil medidas ao Congresso, ou as divulgou por decreto, que destroem a economia e o combalido poder aquisitivo da população. E vem prometendo tomar mais milhares de ações com o mesmo teor, de ataque aos direitos e à economia da Argentina. Não precisa ter bola de cristal para saber que tal política, se não for barrada pela população, irá conduzir o país vizinho a um beco sem saída, mais cedo do que tarde.   

Apesar das características singulares de um presidente bufão, a fórmula que está sendo aplicada na Argentina já foi testada várias vezes no país (e na região): liquidação do mercado consumidor interno, destruição da indústria, privatizações e entrega das riquezas naturais, não são novidades no país, exceto pelo extremismo das medidas, e pelo comportamento folclórico de Milei e sua trupe. Mas, atenção: o objetivo do programa de Milei não é “dar certo” do ponto de vista dos interesses nacionais. O objetivo é transformar o país numa base para investimentos especulativos, principalmente para os grandes grupos financeiros. Esse objetivo é dissimulado por uma análise teórica, extremamente confusa e inconsistente. Milei é partidário da Escola Austríaca de economia, que, dentre muitas fraquezas, não foi testada em parte nenhuma do mundo. 

O movimento popular da Argentina, obviamente, não está preparado para encarar um jogo tão pesado, imposto de forma tão truculenta e avassaladora. Possivelmente, nenhum movimento na América Latina estaria preparado para enfrentar com eficácia tamanha agressividade. A reação popular e dos sindicatos, até o momento, está muito aquém do que seria necessário para barrar um ataque dessa envergadura. Ademais, a destruição da economia não pode ocorrer sem aumento da repressão. O governo Milei, sabendo disso, criou, nos seus primeiros dias, um “protocolo anti piquete”, que, nada mais é, que um método de proibição de qualquer manifestação pública de reação aos ataques à soberania e os salários.  

Por detrás da notória loucura de Milei, há uma crise inédita do capitalismo internacional. Para abrir um novo ciclo de exploração e oportunidades de negócios eles precisam destruir a segunda economia mais importante da América Latina. Parece evidente que, em face da crise mundial, optaram por dobrar a aposta do estrago neoliberal, na oportunidade que se abriu no país vizinho. Os trabalhadores de toda a região devem ficar de olho vivo, porque se o programa destrutivo de Milei, de alguma forma, conseguir se sustentar na Argentina, ele servirá de modelo para todo o subcontinente.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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