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Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

África do Sul: a frente ampla do CNA com a direita branca

"Ao contrário do que ocorreu na época de Mandela, a aliança do CNA com a direita branca vai cobrar seu preço"

No Brasil a estratégia de frente ampla é um rotundo fracasso, forçando o Governo Lula a desenvolver tendências direitistas. Um exemplo está na sua atitude diante das eleições na Venezuela. Fazer coro com a extrema direita internacional em torno da exigência das atas eleitorais do Governo Maduro foi um erro muito grande. Ao não reconhecer os resultados eleitorais oficiais do governo de Maduro, o governo brasileiro entrou em rota de colisão com a Venezuela, que vem sofrendo intenso ataque do imperialismo e da direita. Além disso, o governo brasileiro ofereceu os préstimos, para os países com os quais a Venezuela rompeu relações diplomáticas , de representá-los através de nossa Embaixada na Venezuela. 

Na África do Sul, o mesmo tem ocorrido com o Congresso Nacional Africano, o partido criado por Mandela para liderar a luta anti- apartheid e fazer as reformas sociais necessárias para acabar com a fome e a miséria naquele país. O partido preferiu ser um partido da ordem, sem ameaçar a burguesia branca, que continuou mantendo seus privilégios escandalosos e dominando totalmente a economia do país.

Em 2024, a África do Sul celebrou 30 anos do Dia da Liberdade: 27 de abril de 1994 foi a data das primeiras eleições democráticas no país. Três décadas após a vitoriosa eleição de Nelson Mandela, a população negra luta para enfrentar as forças neoliberais que mantêm a estrutura social do regime de apartheid intacta e o país como campeão mundial de desigualdade. A classe trabalhadora recebe uma miséria para trabalhar longas hora. 74% dos jovens estão desempregados na África do Sul. A população negra continua a ser explorada pela classe dominante da sociedade, que é a classe capitalista, que detém o complexo mineral, energético e financeiro, e a propriedade das terras mais férteis sem que a reforma agrária seja realmente efetivada no país.

O resultado é que o apoio político do partido responsável pela criação e manutenção do atual regime político, o Congresso Nacional Africano (CNA), organização fundada por Nelson Mandela e apoiada pelo Partido Comunista, perdeu a maioria absoluta de que gozava, com abstenção recorde e uma sangria de votos sem precedentes. Apenas 58,63% participaram nas eleições, menos 7,9 pontos do que em 2019, menos 15 pontos do que em 2015 e… quase menos 30 pontos do que em 1994, as primeiras eleições após o fim do apartheid!

A Aliança Tripartida (CNA, Partido Comunista e a central sindical COSATU) venceu com 6.455.994 votos, 40,19%, mas perdeu impressionantes 3.570.481, mais de 35% do seu apoio em 2019 e quase 50% do seu melhor resultado de sempre. No parlamento, passou de 230 para 159 lugares.

A raiva de milhões de jovens, trabalhadores e operários que, após 30 anos de governos do CNA, veem como a discriminação racial e social, a degradação e a miséria nos seus bairros continuam, explica este retrocesso. A principal mudança é que agora, ao lado da burguesia branca, existe uma burguesia negra composta por líderes do CNA como o seu candidato e atual presidente Cyril Ramaphosa. Ramaphosa, antigo dirigente do sindicato mineiro NUM e da COSATU, tornou-se num dos empresários mais ricos do país.

A Aliança Democrática (AD), uma coligação de direita que representa os interesses da burguesia e pequena-burguesia brancas e que defende uma agenda agressiva de privatizações e cortes sociais, obteve o segundo lugar. Embora a população branca represente menos de 8%, a AD mantém um apoio de cerca de 20%, explorando os escândalos de corrupção do CNA e a incapacidade do regime de atender aos interesses da pequena-burguesia branca, negra e de outras minorias. Os seus 3.501.528 votos (22,23%) são menos 100.000 do que em 2019, crescendo apenas 3 lugares.

Um dos grandes beneficiários da desagregação do CNA é o Umkhonto we Sizwe (MK), “Zulu para lança do povo”, um partido criado pelo ex-presidente Jacob Zuma, que foi deposto e expulso do CNA por tentar fazer avançar a falida reforma agrária do governo. Zuma centrou a sua campanha no ataque à política neoliberal de Ramaphosa, conseguindo 2.343.118 votos (14,59%) e 58 lugares, com um discurso populista, denunciando o aumento do desemprego e da insegurança, e apelando ao nacionalismo zulu. Nas zonas rurais, onde este grupo étnico é maioritário, conseguiu o dobro dos votos do CNA.Em quarto lugar, ficou o EFF (Lutadores pela liberdade econômica), uma dissidência de esquerda do CNA, que obteve 9,52%, 1.528.886 votos e 39 lugares e que postula uma reforma agrária radical para abalar as bases sociais do regime.

A crise do regime político sul-africano

A luta heroica da juventude e da classe trabalhadora sul-africana, superando massacres brutais como o de Soweto (1976), liderando greves gerais e revoltas, foi decisiva – juntamente com a solidariedade internacional – para pôr fim ao regime ditatorial e de apartheid da burguesia branca. Um regime imposto a ferro e fogo, com o apoio do imperialismo estado-unidense e britânico, que estabeleceu uma segregação racial desumana, negando à população negra (então 68%, hoje mais de 80%) o direito de voto, o acesso à educação e a atenção à saúde controladas pela burguesia branca, viver nos seus bairros, viajar nos seus meios de transporte, etc. 

As primeiras eleições pós-apartheid deram ao CNA um apoio impressionante, com mais de 62% dos votos e uma afluência às urnas de 86%. Mas Mandela, apesar do seu martírio com décadas de prisão atrás de si, seguiu fielmente os postulados políticos da direção do Partido Comunista Sul-Africano a que pertencia: primeiro a democracia, que incluía pactos com a burguesia branca, e depois, para um futuro indeterminado, o socialismo. 

O governo de Mandela manteve assim o regime capitalista, aprovou uma constituição em que a reforma agrária dependia da indenização aos proprietários brancos, e formou um governo de unidade nacional com os partidos burgueses que tinham sustentado o apartheid. A sua autoridade, após anos de prisão, e um crescimento econômico que, em alguns anos da década, ultrapassou os 5-6%, deram-lhe uma ampla margem de manobra, da qual os seus sucessores também beneficiaram.

Após a crise mundial de 2008-2009, o dinamismo da economia capitalista sul-africana desmoronou, o que fez recrudescer a luta de classes. A greve geral mineira de 2012, mobilizou milhares de trabalhadores, mas recebeu do governo uma repressão impiedosa, em que mais de 200 grevistas foram presos e mais de 40 trabalhadores foram mortos na mina de Marikana pela polícia enviada pelo governo do CNA. Esta situação, associada aos escândalos de enriquecimento e corrupção de muitos dirigentes, provocou um abalo do regime. Os dirigentes do PC e de secções da COSATU ensaiaram uma reação ao governo e aos burocratas da central sindical, mas capitularam diante da repressão e autoritarismo do governo. O resultado mais importante dessa crise foi o rompimento de parte da juventude do que determinou a criação do partido Lutadores pela Liberdade Econômica(EFF), cujo programa era de uma luta não só contra o governo, mas contra o regime burguês vigente. O governo de Mandela não acenou com nenhuma reforma estrutural do regime capitalista, limitando-se a um programa de reformas sociais

A dinâmica da acumulação capitalista e a permanente opressão da população negra

A economia sul-africana registou um desenvolvimento notável nos últimos 30 anos, como resultado da manutenção da dinâmica capitalista e uma intensa associação com a China, que resultou na entrada do país para os BRICS. A economia sul-africana manteve seus pilares tradicionais, como as grandes explorações agrícolas e as fazendas de gado dos proprietários e capitalistas brancos, assim como as minas de platina, ouro e outros minerais importantes. O principal fator de seu dinamismo, no entanto, passa a ser a produção industrial, com a liderança da produção siderúrgica e da indústria automobilística, que representa 8% do PIB do país, juntamente com a emergência do capital financeiro.

A indústria automobilística se desenvolveu com base na política industrial do Governo na África do Sul, gerando receitas vitais de exportação e fornecendo dezenas de milhares de empregos. O Programa de Produção e Desenvolvimento Automotivo estabelece incentivos generosos e não é apenas para uma tecnologia de energia específica. Efetivamente, os fabricantes recebem os mesmos incentivos se produzirem um automóvel tradicional ou veículo elétrico sob este programa.

Este desenvolvimento da economia da África do Sul não mudou significativamente o bem-estar do cidadão. É verdade que, entre 1996 e 2022, as casas sem água corrente diminuíram de 20 para 9% e aquelas com eletricidade aumentaram de 58 para 95%, mas grande parte deste progresso concentrou-se nos primeiros 15 anos e tem vindo a ser corroído desde então, especialmente após a pandemia. Os principais beneficiários do crescimento foram a burguesia branca, a nova elite negra e os estratos superiores da pequena-burguesia. 

A África do Sul é um dos países mais desiguais do mundo. O 1% mais rico detém 70% da riqueza. O desemprego passou de 20% em 2008 para 32% em 2023. (44% com menos de 34 anos). A taxa de pobreza oficialmente reconhecida é superior a 20%, mas a média é enganadora: é de 62% entre os negros, 29% entre os mestiços, 11% entre os asiáticos e 4% entre os brancos. Isso explica a razão pela qual a confiança nos partidos políticos caiu de 79% após o fim do apartheid para 21% atualmente, atingindo o CNA de forma especialmente dura, uma vez que perdeu nos últimos anos lugares de presidente de câmara em grandes cidades como Joanesburgo, Cidade do Cabo e outras. 

A crise do Congresso Nacional Africano 

Ao contrário do que era de se esperar, a política de alianças do CNA não se dirigiu para o MK de Zuma ou aos Lutadores pela Liberdade Econômica. O efeito da perda da maioria absoluta do CNA foi empurrar a sua direção ainda mais para a direita, formando um governo de unidade nacional com o reacionário AD branco e o partido minoritário Inkatha, que colaborou com o apartheid ao representar os interesses dos chefes tribais e das camadas mais atrasadas da população zulu. O MK de Zuma não entrou no governo, porque foi vetado pelo Presidente devido às discordâncias que levaram à expulsão de Zuma do CNA.

Por seu lado, a AD vetou a inclusão do EFF, que o próprio Ramaphosa propôs numa tentativa de cobrir o seu flanco esquerdo. Há um ano, perante 100.000 apoiantes, Julius Malema, líder do EFF, estabeleceu o objetivo de dar um salto nestas eleições, lutando mesmo pelo poder, reunindo toda a insatisfação da esquerda com o CNA, mas perderam 350.000 votos e 5 lugares. A campanha do CNA e dos seus meios de comunicação social tem sido brutal, recorrendo a provocações como o envio de lúmpens para os seus eventos para provocar confrontos e retratar a EFF como radicais violentos cujo avanço levaria a confrontos como os durante o apartheid. Tal como noutros países onde cresceram forças à esquerda das organizações tradicionais dominadas pela burocracia reformista, a chave para enfrentar estes ataques é manter a mobilização nas ruas que deu o apoio de massas à EFF e apresentar um programa e um plano de ação capazez de entusiasmar e mobilizar todos os oprimidos.

Ao contrário do que ocorreu na época de Mandela, a aliança do CNA com a direita branca vai cobrar seu preço. Certamente que vão querer realizar suas reformas neoliberais, e que não deixa de ser também a política do CNA. Os ataques que a classe dominante está a preparar só podem ser travados com a luta de classes, com um programa que proponha a expropriação dos bancos, dos latifúndios e das grandes empresas sob o controle dos trabalhadores e assim conquistar uma vida digna. Esse programa só pode ser levado à frente por partidos como os Lutadores pela Liberdade Econômica ou outros mais à esquerda, que se declararam marxistas-leninistas.

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