O jornal O Globo publicou, nesta segunda-feira (27), uma coluna intitulada Temos de deixar radicalismo de lado para sobreviver“, assinada por Preto Zezé, presidente da ONG Central Única das Favelas (Cufa-RJ). A matéria chama a uma unidade “baseada em fatos”, tomando por eixo central a enchente que destrói o Rio Grande do Sul. Vamos aos argumentos:
Escondendo a burguesia
“O cenário social e político brasileiro está radicalizado, com disputas nas ruas e nas redes sociais entre narrativas que refletem conveniências políticas e ideológicas. No meio disso, existe uma crise social sem precedentes, herança de uma sociedade baseada em escravidão, destruição de ecossistemas e submissão de povos originários.”
Em primeiro lugar, Zezé descaracteriza a crise, pois isso derrubaria seu ponto. Como assim? Explicamos: a crise, e a disputa colocada, não é “entre narrativas que refletem conveniências”, como se medidas supérfluas e seus resultados estivessem colocados em questão. Não é o caso. A crise social tampouco tem a ver com o período da escravidão, com o meio ambiente ou com a colonização dos índios no Brasil. Todo esse desfile de generalidades serve a um único propósito: ocultar que o que está colocado, a raiz da crise, que também não é no Brasil, mas internacional, é econômica, e se dá em torno de interesses concretos, materiais e conflitantes.
Ao especulador financeiro, que lucra com base no parasitismo do setor produtivo, não interessa o financiamento da Defesa Civil, por exemplo, pois esse investimento será um dinheiro que ele poderia estar recebendo, através do aumento de repasses acionários, do pagamento da dívida pública, e uma série de outros mecanismos que ele utiliza para roubar a população.
O que tem a escravidão a ver com isso? A colonização dos índios? Nada. Aquele que esmaga a população, negros, índios, e pobres em geral, que corta o dinheiro público que deveria ser integralmente gasto para beneficiar a população do País, para garantir-lhe dignidade, não é o senhor de engenho e nem o barão do café de séculos atrás. É o banqueiro, o grande acionista, o rentista, que garante a sua fortuna por meio de políticos comprados por ele. Hoje.
E o meio ambiente? Ora, a destruição irracional do meio ambiente, para uma produção de riqueza imediata maximizada, também não é um fato social geral. Ela não interessa aos trabalhadores, que não veem sequer a sombra desse lucro, mas interessa à burguesia.
Os interesses colocados são diretamente opostos, antagônicos, irreconciliáveis. Para esconder essa contradição, o jogo de cena identitário.
Um crime sem culpados?
Preto Zezé então passa a descrever os males da enchente, para evocar emoção no leitor, e então poder mais facilmente ocultar a realidade, livrando os criminosos responsáveis pela enchente. Não à toa, ele escreve n’O Globo.
“A água bate à nossa porta e agora precisamos pensar no mundo que deixaremos às próximas gerações. Em meio ao caos, agentes públicos se esforçam para responder ao desespero de milhares de pessoas.”
É linda essa união. A água bate “à nossa porta”, de todos, que estão juntos na empreitada de superar a cheia, certo? Errado. Onde estão os agentes públicos do Rio Grande do Sul? Estão propondo mais dinheiro para a polícia, em meio a uma calamidade generalizada, para impedir os saques a mercados, ou seja, para que a população, mais do que já está, passe fome. Será que a água bate à porta de Eduardo Leite? Não há esforço algum, e isso está óbvio na frase seguinte, no mesmo parágrafo.
“Organizações e lideranças públicas se mobilizam para ter acesso a doações e distribuí-las rapidamente. Diferentemente da pandemia de Covid-19, em que a logística era controlável, a crise ambiental torna isso impossível” (grifo nosso).
Ora, doações? E o governo do Rio Grande do Sul? E o Estado? Nada se fala a respeito. Não é, ao que parece, para Preto Zezé, função do Estado garantir coisa alguma à população. Esta é que deve organizar doações e então, quiçá, o Estado se encarregará de distribuí-las. Se é assim, para que existe o Estado, em primeiro lugar? A política das doações é uma forma de limpar a barra do governo do Rio Grande do Sul em primeiro lugar por levar à enchente, ao cortar a verba que seria aplicada na prevenção de tais eventos, que fora a escala variável, são recorrentes e previsíveis, e em segundo lugar, ao não aplicar, agora, toda a verba do governo e mais na assistência à população. O meio ambiente, novamente, aparece como uma maquiagem para Eduardo Leite (PSDB), o governador do estado. Esse ponto vem mais explicitado na sequência:
“A radicalização e a insatisfação popular com os gestores públicos se unem à produção maciça de informações falsas, agravando o caos. Isso impacta a vida real.”
Ou seja, Preto Zezé atrela a insatisfação da população com governantes que a deixaram e ainda deixam à mercê de uma hecatombe, às notícias falsas, que o setor político representado por Zezé busca tornar crime. Em outras palavras, Zezé está dizendo, de maneira disfarçada, que deve ser ilegal se revoltar, mesmo frente a uma calamidade, contra os governantes. O que “agrava o caos” e “impacta a vida real” não é a política do governador, dos deputados estaduais, que a permitiram acontecer. Para o autor, é a revolta da população que agrava a situação. Uma concepção fascista.
“Agora que o impacto inicial da tragédia diminuiu, as doações também diminuem, surgem doenças, e contabilizamos prejuízos […] aumentam os pedidos para que o país se una em torno de ajudar a quem mais precisa. Concluo dizendo que precisamos encontrar um lugar na política onde todos possam ser ouvidos, fazer um pacto com informações baseadas em evidências e fatos e construir agendas públicas de interesse comum, respeitando as diferenças, mas mantendo o foco na coletividade.”
A união, portanto, deve se dar entre afogadores e afogados, assassinos e vitimados. E tal união será uma em que Eduardo Leite radicalmente muda de política? Evidente que não! É a união em que a população cala a boca e não derruba o farsante que utiliza as verbas públicas para os banqueiros que no cargo o colocaram. As evidências e fatos, assim, são aquelas que não apontam para culpados, não apontam para a política responsável pela enchente, o neoliberalismo, afinal, é tempo de união.