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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A poesia de Leila Míccolis

Poesia e arte pornô brasileiras

Em 1984, a editora Codecri lançava o livro “Antolorgia / Arte Pornô”, o primeiro volume da coleção ARTESetCETERA; além de Glauco Mattoso, Paulo Leminski e Bráulio Tavares, a seleção de poetas inclui Leila Míccolis, para quem, no espírito do livro, “viva a puta merda, a puta velha, a putaria, a filha da puta, e toda a puta que pariu”. Assim, entre tantas putas e nas páginas da “Antolorgia”, encontra-se este poema seu:

              “Dos males, o menor”

Se eu te chamo de putinha / sou machista e indecorosa! / No entanto, se não chamo, / você não goza…

A Arte Pornô talvez não se faça sem uso dos palavrões, esse é um modo de ser indecoroso; a poesia pornô, certamente, aprecia a palavra censurada, mas não apenas nos sustos, porventura, provocados por ela. Uma vez poesia, palavras e palavrões prestam contas a grandezas textuais além do vocabulário; no poema de Leila, sem dúvida, nota-se a musicalidade prosódica encadeando as frases e palavras, contudo, a engenhosidade poética não se resume nisso, sendo melhor apreciar como se dá, nos versos, o encadeamento entre o que se diz e como se faz para dizê-lo.

O poema é quase uma quase quadra e nesse “quase”, justamente, ele se mostra engenhoso. Nas quadras, os quatro versos costumam se expressar em métricas regulares, geralmente, em redondilhas maiores ou menores, quer dizer, versos de cinco e sete sílabas poéticas, respectivamente; a quadra de Leila sugere se formar por redondilhas maiores, conforme os três primeiros versos, todavia, o último possui apenas quatro sílabas, destoando do ritmo dos demais. Dessa maneira, há estabilidade prosódica nos três primeiros versos devido à métrica de sete sílabas, acentuada na terceira e última sílabas – isto é, um anapesto seguido de um peão quarto –; todavia, tal constância se modifica no último verso de quatro sílabas, com acentuação apenas na última – ou seja, um peão quarto –, a alterar, sensivelmente, o compasso rítmico estabelecido entre as acentuações tônicas e átonas do início.

Enquanto isso, na narrativa do texto, duas amantes se encontram e, se uma delas resiste aos assédios verbais da outra, precisa deles, paradoxalmente, para gozar. Em vista disso, se o suposto assédio flui por meio dos palavrões, flui também o gozo, fluindo também, nas dimensões prosódicas, as redondilhas maiores e o ritmo estabelecido; entretanto, se o assédio para, interrompendo-se o gozo, rompe-se o ritmo. A fluência narrativa, portanto, correlaciona-se à fluência prosódica, revelando-se a aparente simplicidade do texto.

Nessas circunstâncias, como ler Leila Míccolis? Em princípio, bastaria a instrumentalização básica em língua portuguesa, contudo, entre a língua e as inúmeras falas geradas por meio dela, há a dimensão discursiva, a encaminhar tipos de distintos de discursos, cada qual com suas especificidades semióticas. Em outras palavras, das potencialidades da língua às realizações em fala, há gêneros discursivos, permitindo, entre outras funções, distinguir, em nossa cultura, por exemplo, discursos religiosos, políticos, jornalísticos, literários etc.

Tais formações discursivas, uma vez estabilizadas, constituem-se polemicamente; no discurso literário, consequentemente, surgem critérios para se dizer o que pertence ou não a seu campo, ou melhor, dizer o que é literário e o que não é. Tais critérios, sempre relativos em e a determinada postura crítica, refletem, justamente, os embates ideológicos dos muitos modos de fazer literatura; a pergunta inicial, logo, poderia ser reformulada assim: em termos literários, como Leila Míccolis encaminha sua poética?

Embora na poesia de Leila Míccolis se enfatize a temática erótico-pornográfica – o que já é relevante o bastante, visto o caráter pudico de boa parte de poesia brasileira canonizada –, em sua obra se abarcam outros temas; sua conversação, assim como a arquitetura de Glauco Mattoso, não se presta apenas ao erótico, nela se cuida de quase tudo; inclusive no erotismo, do fescenino ao sutil, há gradações. Apenas para ilustrar isso, seguem nove poemas de sua autoria:

“Dose”

Queres saber o que ocorre? / O nosso amor, de tão sóbrio, / virou um porre.

 

“Câmera baixa”

Vendo o aparador de grama, / formiga protesta e berra; / — Desliguem essa motosserra!

 

“A geometria do mar”

Tirar zero em Matemática / eu considero uma afronta: / e acertar os ângulos das ondas… / não conta?

 

“Circo”

Rir por obrigação / ou pra fazer média / é uma tragédia.

 

“Rinha de Gatos”

Viver como os gatos, / que se aninham / um em cima do outro, / e dormem numa intimidade amiga, / até a próxima briga.

 

“Autodidata”

Sofri / a influência de muitos poetas / que nunca li.

 

“Nomes trocados”

A natureza é sábia, / mas às vezes se atrapalha. / Um exemplo desta falha / léxico-gramatical, / vemos no reino animal: / quem devia se chamar Viuvinha / não era a abelha-rainha?

 

“Prova”

Da cola escreve o conteúdo / na perna bem torneada; / e o colega, vendo tudo, / não consegue colar nada.

 

“Radar”

Em geral, / o meu normal / é acorda analógica / e ir dormir digital.

 

Leila Míccolis, semelhantemente a Glauco Mattoso, embora cuidando de temas variados, vê o mundo mediado pelo erotismo; porém, enquanto ele escolhe o soneto para se expressar, ela se define por meio de um estilo específico de coloquialidade, caracterizado pela concisão da palavra. Para a ler com acuidade, logo, compensa procurar por Leila antes em seus modos de dizer que, propriamente, nos temas preferidos.

Inserida na conversação, sua poesia remete às formas ditas breves, tais quais chistes ou trocadilhos; o conhecido estudo de Freud, “O chiste e sua relação com o inconsciente”, vem ao encontro da eficácia dessas escolhas. Grosso modo, Freud aproxima os mecanismos do chiste aos do inconsciente; para ele, mediante chistes, expressam-se conteúdos reprimidos, dizendo-se, com eles, coisas interditas.

Conta-se que dois homens públicos, enriquecidos desonestamente, encomendaram retratos a renomado pintor; durante a festa da exposição das telas, ambos perguntam a certo crítico, entre os convidados, sua opinião, quando ele, surpreendentemente, reclama pela figura do Cristo, ausente entre as duas molduras; conta-se ainda que, ao ser indagado sobre a visita ao primo rico, o primo pobre respondera haver sido uma visita “familionária”. Os exemplos são do próprio Freud: no primeiro, diante da impossibilidade de ofender diretamente aos homens públicos, chamando-os corruptos, o crítico aponta a ausência do Cristo, crucificado entre dois ladrões; no segundo chiste, o neologismo “familionária” surge da combinação das palavras “família” e “milionária”, confundindo os significados na fusão dos significantes, a apontar para relações pessoais definidas antes em distinções sociais que por laços familiares.

Colocados em contextos discursivos, os chistes envolvem trabalhos com a linguagem, havendo neles, em termos pragmáticos, contestações aos fluxos conversacionais em questão; assim, no exemplo dos quadros, o chiste converte ilustres anfitriões em bandidos e, no dos primos, as relações familiares sucumbem perante as diferenças sociais. Desse ponto de vista, para desorientar a conversação, os chistes apresentam, necessariamente, argumentos capazes de superar os valores afirmados no discurso fluente; todavia, na eficácia linguística, os chistes não se prestam a longas réplicas, buscando contrariar o fluxo corrente com outro fluxo, mas o faz pontualmente, a agir, surpreendentemente, no curso do esperado. Por decorrência, na interrupção da conversação, surge o silêncio, hora da reflexão e do constrangimento.

Para compreender melhor a engenharia poética de Leila Míccolis e como ela transforma chistes em poesia, vale a pena comparar, relativamente às rimas, seus versos com os de Pedro Xisto; eis cinco de seus mais de 1500 haicais:

 

atabaques batem / atabaques atabaques / atabaques: baques

 

iaiá iaiá ia / aí: ôi ioiô: aí / ai ai iaiá ia

 

mar santo (a chamar / a bela) espelha e revela / já: mãe iemanjá

 

olinda: ó linda / filha d’algo glauco infindo / marim a marinha

 

LÁJEA LÁJEA LÁJEA / LÁJEA LÁJEA LÁJEA LÁJEA / LÁJEA LÁJEA lágrima

 

Embora inovadores e engenhosos, a prosódia e as rimas se mantêm constantes, com rimas nos finais das redondilhas menores e o acento da redondilha maior rimando com o final do verso; dessa maneira, garante-se a estrutura prosódico-fonológica imposta pelo gênero convocado pelo poeta. Dessa perspectiva, as métricas e as rimas estão em função das coerções do gênero; apreciá-las envolve, antes de tudo, valorizar as soluções encontradas não apenas no seio do poema, mas em relação à forma canônica escolhida. Em Leila Míccolis, contrariamente, isso não ocorre; porque não há regras rígidas a seguir, rimas e métricas surgem, ao longo do poema, sem condições pré-estabelecidas, gerando espontaneidade, a desvincular os versos das tradições formais.

As rimas, talvez por soarem com mais evidência que as demais propriedades prosódicas do poema, parecem, para os leitores menos acostumados com a poesia, a única característica dos discursos poéticos; isso se verifica em poetas jovens e inexperientes, quando não cuidam da métrica, ou em visões conservadoras, que não reconhecem a poesia moderna quando ela se faz sem rimas. Aproveitando-se disso, Leila Míccolis cria, com rimas, uma poesia despretensiosa, mas não mal elaborada; a breve análise do poema “Dos males, o menor”, feita no início, ratifica tais observações. Nesse poema – Se eu te chamo de putinha / sou machista e indecorosa! / No entanto, se não chamo, / você não goza… –, a palavra “goza”, rimando com “indecorosa”, não surge aleatoriamente, apenas para fazer o texto soar feito poesia mediante rimas; nos versos, a rima se articula à quebra da métrica e suas correlações com a narrativa, expostas anteriormente.

Em vista disso, sem se afirmar aparentemente em arquiteturas linguísticas complexas, a poesia chistosa de Leila, soando espontânea e despretensiosamente, vem de encontro às conversações sérias e extensas. Resta, ainda, verificar sua atitude performática.

Poetas afeitos à arquitetura poética, tais quais Pedro Xisto, valem-se constantemente da escrita na organização das formas poéticas escolhidas; a ordenação tipográfica de sonetos ou haicais exemplifica isso. Poetas coloquiais, diferentemente, exercem a performance construindo cenas aptas ao desenrolar da oralidade, tranquilamente partilhada entre os interlocutores, menos efusiva e descentralizada do poeta.

Em estudos a respeito da poesia de Ana Cristina Cesar, que muitas vezes é concisa feito Leila Míccolis, Viviana Bosi relaciona atitude performática e estilo breve e sucinto; em linhas gerais, de acordo com ela, Ana Cristina Cesar, em confluência com artistas performáticos, faria algumas de suas poesias soarem enquanto performances orais. Dessa maneira, o poema se torna happening; estes quatro poemas, de Ana Cristina, soariam feito happenings no seio da oralidade, semelhantemente à inserção do happening na vida cotidiana:

 

Estou vivendo de hora em hora, com muito temor. / Um dia me safarei – aos poucos me safarei, começarei um safari.

 

sou uma mulher do sec XIX / disfarçada em sec XX

 

Por que essa falta de concentração? / Se você me ama, por que não se concentra?

 

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma / Tão distraidamente

 

A poética de Leila Míccolis é equivalente; recorrendo às conclusões de Viviana Bosi, admitem-se as mesmas observações sobre sua práxis. Em seus poemas-happenings, entre os poetas da literatura brasileira, Leila coloca-se feito se conversasse conosco; nas conversas, muitas vezes sérias, seus versos são réplicas agudas e pontuais, fortes o suficiente para dar novos sentidos a ordem fluente das coisas e da própria poesia.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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