O identitarismo é um dos fenômenos mais problemáticos dos dias atuais, sobretudo para quem empreende uma luta à esquerda, já que esse segmento das disputas políticas concorre exatamente com a luta de classes, dentro do que se convenciona como “esquerda”. Pouco importa se a origem dos identitários se dá justamente nos meios liberais, jamais tendo uma pauta desse tipo nascido de países socialistas. Pelo contrário, todos vêm quase homogeneamente de França e Estados Unidos, pelo menos desde o maio de 1968. Apesar disso, o identitarismo disputa o imaginário das esquerdas, inclusive quando se trata de liberais convictos, como uma disfuncional jornalista-feminista que fez seu comovente depoimento “em defesa das mulheres judias vilipendiadas pela crueldade do Hamas”.
Até aí, dentro do script. Era de se esperar que a bandeira da mulher, flanco pelo qual os países árabes são particularmente frágeis, seria usada como tentativa de enfraquecer a luta palestina. Luta esta que os ocidentais querem restringir à política dos dois Estados, algo a que todos até pouco tempo se opunham, mas que agora se tornou os anéis a se entregar para manter os dedos: a existência da Israel e domesticação da luta palestina por meio da concessão de um Estado a ser fantoche (ou alguém acha que darão exército e autonomia política plena à Palestina, para ela se aliar formalmente aí Irã?).
E é como se, em sendo essa a legítima causa palestina, ela já não tivesse sido alcançada há décadas, já que todos os liberais apoiam. Óbvio que a solução se tornou inviável porque nem os palestinos, nem o Ocidente jamais a quiseram. Não seria necessário recorrer ao expediente dos corpos decapitados, das mulheres, todo o conjunto de clichês que atingem os inimigos do Ocidente na propaganda de guerra, se o problema fosse simplesmente ambos os lados cumprirem o acordo de Oslo (cujo assinante, da parte israelense, morreu assassinado por extremistas judeus que não queriam os dois Estados, e isso não mobilizou muita gente).
Afinal, veja: em abril de 2022, a Rússia era acusada de decapitar e massacrar em Bucha, na Ucrânia, o que não foi provado e a Rússia segue negando. Em outubro de 2023, a Palestina em Israel, o que o Hamas nega. E assim é com as notícias sobre a Coreia do Norte, assim foi com a Líbia. É sempre o inimigo do Ocidente que é incivilizado, capaz das piores atrocidades, incapaz de sentimentos humanos. Ingleses que rasgaram bebês no útero das mães nas Malvinas? Militares canadenses queimando indígenas vivos em Nunavut? Jamais. E não aconteceu mesmo. Seria uma mentira, como são as atuais. O que é verdade é a capacidade de criação e disseminação de mentiras, do Ocidente, que atinge só a seus inimigos, obviamente. Não que eles não criem também, mas certamente não tem dinheiro para espalhar.
Sendo assim, não seria uma das principais ferramentas para o diversionismo na luta de classes, o identitarismo, igualmente aplicável à luta palestina? Não demorará, portanto, a aparecer o palestino ou principalmente a palestina woke. A pessoa de identidade árabe interseccional, a palestina feminista vestida com lenço xadrez e de braço erguido na manifestação, e que replica todo o discurso ocidental que jamais se verá de uma mulher palestina (já vivi lá, elas nem se sentam ao lado de um homem no transporte público), mas que é contra as entidades que defendem a Palestina de verdade.
É bom que se fique de olho…