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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A história em quadrinhos experimental – 2ª parte

Palavras e imagens na linguagem dos quadrinhos

As relações entre a língua e as imagens participam da linguagem dos quadrinhos; tais relações, embora se mostrem corriqueiras nas HQs, nem sempre se manifestam com obviedade nos primeiros textos. Recorrendo a dois artistas, Rodolphe Töpffer e Richard Outcault, considerados fundadores da linguagem dos quadrinhos, observa-se, no estilo de cada autor, dois modos distintos de resolver a relação língua e imagem nas HQs: (1) em Töpffer, os textos se apresentam em legendas sob as ilustrações; (2) em Outcault, os textos encontram-se escritos na camisola do Yellow Kid, já aparecendo balões nas falas de algumas personagens.

Dessa forma, enquanto Töpffer (1799-1846) viveu na Suíça, com a arte das HQs mediada pela arte da ilustração, Outcault (1863-1928) viveu nos Estados Unidos, com a linguagem das HQs mediada pela inserção nos jornais. Percebe-se, portanto, entre os dois precursores dos quadrinhos, um oceano de distância, quase um século de diferença e mídias bastante distintas de atuação.

No que diz respeito às relações língua e imagem, observa-se, seguindo o processo histórico de formação da linguagem dos quadrinhos, duas etapas: (1) a diferenciação entre a ilustração e a legenda – como aparece em Töpffer –, na qual a língua e as imagens se separam em espaços distintos, igualmente na relação texto e ilustração nas páginas dos livros; (2) a inserção da língua no mesmo espaço em que se desenvolvem as imagens, semelhantemente à HQ enquanto linguagem constituída.

Dessa feita, verifica-se, tanto em Töpffer quanto em Outcault, talvez devido às relações entre imagem e língua ainda se definirem mal, tendências para a pantomima, decorrendo em minimizações do uso da língua, a derivar para quadrinhos apenas visuais; nos tempos de Outcault, a virada do século XIX para o século XX, utilizou-se a pantomima para vender jornais para analfabetos. A pantomima, portanto, revela-se gênero bastante antigo de histórias em quadrinhos, colocando-se, praticamente, na gênese dessa linguagem; em “Henry”, de 1932 – no Brasil, o “Pinduca” –, criado por Carl Anderson, predomina a pantomima.

Nessas circunstâncias, embora o quadrinho mudo ou pantomímico se mostre tão antigo quanto a própria linguagem dos quadrinhos, ele está longe de configurar apenas mera etapa a ser superada; pelo contrário, o quadrinho mudo possui desenvolvimento próprio na história da HQ. Assim, diferentemente do cinema, em que o cinema mudo parece antes uma etapa da evolução do cinema enquanto linguagem, a pantomima não apenas comparece nas origens dos quadrinhos, mas permanece ao longo de seus desdobramentos posteriores.

Na HQ brasileira do início de século XXI, seja no mercado editorial, seja em vias alternativas, há dois exemplos de pantomima merecedores de destaque: (1) os trabalhos de Gustavo Duarte; (2) a coleção Cachalote 1000, projeto de Rafael Coutinho. No que diz respeito a HQ experimental, a coleção Cachalote se apresenta como quadrinho experimental – o nome 1000 se refere a mil modos de construir narrativas –; Gustavo Duarte, por sua vez, não costuma se colocar entre os experimentalistas. Diante disso, cabe indagar se a coleção Cachalote se configura experimental por não utilizar a língua em suas composições; em outras palavras, bastaria ser pantomima para ser HQ experimental?

Trabalhos semelhantes a “Monstros”, de Gustavo Duarte, indicam, a princípio, depuração da pantomima e não, necessariamente, experiências com ela; na coleção Cachalote, diversamente, os autores convergem para o experimentalismo nos modos de condução narrativa. Consequentemente, na Cachalote 1000, a pantomima se torna coerção textual, com os autores seguindo a ausência da língua por condição de composição da HQ. Em vista disso, referindo-se à pantomima, todos eles depuram o gênero; as estratégias narrativas, no entanto, surgem mais sofisticadas que as pantomimas do Pinduca ou do Yellow Kid. Em suas aventuras, Yellow Kid, por exemplo, disputa bolas de golfe com os gatos de rua e Henry/Pinduca atormenta passageiros dos bondes com sua curiosidade; ambos se envolvem em narrativas simples, com ações repetidas em função de mesmo motivo, dispostas cronologicamente. Enquanto isso, na Cachalote 1000: (1) em “Drink”, de Rafael Coutinho, HQ que inaugura a coleção, as personagens seguem por narrativas intrincadas, com variados desdobramentos e tempo fragmentado; (2) “Desvio”, de Daniel Gisé, possui narrativa difusa, desestabilizando as expectativas do leitor com encaminhamentos inusitados; (3) “La naturalesa”, de DW Ribatski, “Sim”, de Gabriel Goes, e “O plexo holístico”, de Diego Gerlach, parecem pesadelos; as imagens surgem, feito nos sonhos, enquanto manifestações simbólicas de conteúdos latentes, portanto, com maior complexidade que as trapalhadas divertidas de duas crianças.

Não se trata, evidentemente, de minimizar os trabalhos de Outcault e Tracht/Liney, pois HQs não se realizam apenas mediante estratégias narrativas; salientam-se, nos casos arrolados, particularidades entre modos distintos de composição.

Por fim, na conclusão deste tópico, observa-se que a pantomima encaminha, pelo menos, uma consideração importante sobre a HQ experimental, permitindo diferenciar depuração de experimentalismo: (1) na depuração aprimoram-se gêneros tradicionais na história da linguagem em questão; (2) no experimentalismo, busca-se por renovações e subversões de tópicos consolidados, por exemplo, as estratégias narrativas.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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