“O destino da Venezuela, no século XXI, depende da nossa vitória em 28 de julho. Se não querem que a Venezuela caia num banho de sangue, numa guerra civil fratricida, produto dos fascistas, garantimos o maior sucesso, a maior vitória na história eleitoral do nosso povo”. Essas foram as palavras de Nicolás Maduro, que, ditas em discurso às vésperas da eleição presidencial, relembravam o Caracazo, em 1989, quando movimentos sociais se insurgiram contra as medidas impostas pelo direitista Andrés Peres e este respondeu chamando os militares a massacrar os manifestantes.
Na interpretação do governo brasileiro, ávido leitor da imprensa burguesa, Maduro estava ameaçando a população de perpetrar um banho de sangue caso sua reeleição não ocorresse. A simples ideia de que um governante fizesse isso é absurda, pois mais eficaz que ameaçar publicamente a população seria não realizar eleições, como, aliás, tem feito Zelenski, na Ucrânia, que parece não ter percebido que seu mandato acabou – fato este que, no entanto, nem mesmo aparece na pauta da imprensa.
“Assustado” com a declaração, Lula formulou uma espécie de pito ao presidente vizinho: “Maduro tem que aprender: quando você ganha, você fica, quando você perde, você vai embora. Vai embora e se prepara para disputar outra eleição”. E mais: “Eu disse a [Nicolás] Maduro que a única possibilidade de a Venezuela voltar à normalidade é haver um processo eleitoral amplamente respeitado”.
Por “processo eleitoral amplamente respeitado”, não sejamos ingênuos, entenda-se “eleição de candidato do imperialismo” – pelo menos, é o que temos visto desde o resultado que deu a vitória a Maduro. O mesmo Lula disse na imprensa que é normal questionar um resultado apertado, justificando, dessa maneira, o não reconhecimento da vitória de Maduro pela OEA e por países vizinhos, como o Peru, o Chile e a Argentina. Não vamos esquecer que ele próprio venceu num pleito apertadíssimo, o que parece ser a regra em tempos de alta polarização. Aqui, a reação bolsonarista foi a invasão dos prédios públicos de Brasília, que, interpretada como tentativa de golpe de estado, deu lugar a uma série de prisões.
Lula, como parece ter aprendido com os tucanos, continua em cima do muro: nem recusou a vitória de Maduro nem a reconheceu. Será mesmo que um país do tamanho e da importância do Brasil consegue não ter posição clara sobre isso? Não ter posição já é ter posição. Lula, porém, teve uma conversa com Biden sobre o assunto e resolveu fazer coro com a “turma da ata”: quer ver as atas, os relatórios detalhados, urna por urna. Muito bem. A Venezuela também usa urnas eletrônicas, como as brasileiras, sendo que lá a máquina emite um recibo de papel, que o eleitor confere e deposita numa urna à moda antiga. Mesmo assim, os editoriais da Folha e do Globo já afirmavam que tinha havido fraude e todo o mundo quer ver as atas.
Agora estamos confusos, pois, no Brasil, é proibido questionar as urnas eletrônicas. O simples fato de pôr em questão a possibilidade de esse sistema ser fraudado já é um crime. Diga-se, a propósito, que o Bolsonaro se tornou inelegível exatamente porque pôs em dúvida a segurança do sistema. E, falando no Diabo, é preciso registrar no anedotário nacional uma curiosidade: no Bom Dia 247 do último domingo, os comentaristas se mostravam entusiasmados com esse recibo da urna, visto como um elemento a mais de segurança, mas ninguém se lembrou de dizer que era essa a reivindicação do Bolsonaro, “o inelegível”, como gostam de dizer.
Deixando de lado toda essa indecisão do nosso governo, quem fez o certo foi Xi Jinping, um dos primeiros a felicitar Maduro pela vitória. O líder chinês não quer ver ata nenhuma, não reivindica ingerência no outro país e mostra que sabe muito bem o que está em jogo. Disse ele: “Desde que assumiu o cargo, [Maduro] levou o governo venezuelano e o seu povo a escolherem um caminho de desenvolvimento que se adapta às suas condições nacionais, fazendo grandes conquistas na construção nacional”. E mais: “A China vai, como sempre, apoiar firmemente os esforços da Venezuela para salvaguardar a sua soberania e dignidade nacionais, bem como a sua soberania e a justa causa venezuelana de se opor à interferência externa”.
Xi Jinping disse o que tinha de ser dito. O Brasil vai cobrar a tal ata, baseado nas dúvidas levantadas pelos institutos de pesquisa vinculados ao imperialismo. A propósito, vale a leitura de matéria deste diário que explica exatamente quem está por trás dessas empresas de pesquisa e qual é a sua folha corrida. De resto, a hesitação de Lula não é muito diferente da que demonstrou em relação à luta de resistência do povo palestino, reduzida a “ato terrorista”.