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Coluna

A guerra internacional em torno do dólar

"É de conhecimento público que a equipe do candidato Donald Trump está elaborando uma estratégia para estimular os países do Brics a continuarem utilizando o dólar americano"

É de conhecimento público que a equipe do candidato Donald Trump está elaborando uma estratégia para estimular os países do Brics a continuarem utilizando o dólar americano em suas transações comerciais, caso vença as próximas eleições presidenciais. Numa entrevista recente, o ex-presidente foi direto ao ponto: “Estamos perdendo muitos países no dólar, eles estão caindo como moscas”…”Se algum dia perdermos isso, será o equivalente a perder uma guerra. Isso realmente nos tornaria um país de Terceiro Mundo” (publicado no site Brasil 247 em 21.06.2024). Essas declarações revelam um elevado nível de consciência da gravidade do problema, por parte do candidato.

Essa declaração ocorre em meio a erosão da influência norte-americana no mundo e a simultânea elevação da influência global dos Brics, que recentemente ampliou o bloco para 10 países. No dia 09 de junho, a Arábia Saudita anunciou que não irá renovar o acordo dos petrodólares, assinado com os EUA em 1974. Por esse acordo, que já tinha meio século, o governo de Riad passou a exigir dos compradores que suas exportações de petróleo fossem pagas em dólares norte-americanos, ao mesmo tempo que investia as receitas em papéis do tesouro dos EUA. O acordo, na prática, definiu que o dólar passava a ser a moeda oficial dos negócios com petróleo, o que garantiu a hegemonia dessa moeda no mundo, reforçando assim, enormemente, o domínio financeiro dos EUA.

O acordo possibilitou também uma grande atratividade aos títulos do tesouro norte-americano, na medida em que estabeleceu na prática um “mercado cativo” para eles. Foi um acerto realmente poderoso, pois envolveu o país que detém a segunda maior reserva de petróleo da terra, localizado em região estratégica em termos geopolíticos, e, ao mesmo tempo, envolveu a principal commodity da economia mundial (se retirarmos a água dessa condição).

Com o acordo, os países exportadores de petróleo dependiam totalmente do dólar para realizar seus negócios. No caso dos importadores, além dos gastos com compra de petróleo, tinham que manter sempre uma paridade razoável entre sua moeda e o dólar, para não pagar mais pelo petróleo, em moeda nacional. Com o fim do petrodólar, abre-se a possibilidade de os países importadores e exportadores utilizarem outras moedas, não ficando diretamente à mercê da ditadura do dólar. A decisão anunciada pelo governo saudita não é uma decisão isolada sobre petrodólares, mas trata-se de uma mudança de política monetária. Por exemplo, a Arábia Saudita está participante de um projeto de moeda digital, coordenado pelo banco central da China, que envolve outros países como, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes Unidos.

Uma das razões para a decisão do governo saudita é o comércio cada vez mais significativo com países como China, Índia, Japão e Rússia, que apostam numa maior independência em relação ao dólar. Mesmo no caso do Japão, que é um país imperialista, altamente dependente e próximo dos EUA. Ou seja, nesse quadro de aproximação comercial e política com países da Ásia, o acordo em torno de petrodólares perdeu o sentido para a Arábia Saudita.

Um dos projetos centrais dos países que constituem o Brics é substituir o dólar como moeda das transações realizadas dentro do bloco. China e Rússia já estão comerciando em suas moedas. A decisão da Arábia Saudita, ademais, deve ser compreendida em um contexto de grave crise do imperialismo mundial. Os sintomas desse fenômeno estão por toda parte: derrota humilhante dos EUA no Afeganistão em 2021; atual operação militar russa na Ucrânia; golpes militares anti-imperialistas na África; massacre dos palestinos na Faixa de Gaza (patrocinado política e financeiramente pelo governo dos EUA).

Há uma evidente crise do imperialismo, com uma escalada da guerra ao nível internacional, que tende a piorar nos próximos anos. OS EUA, verdadeira máquina de guerra, acuado, tende a ser tornar ainda mais agressivo. O orçamento militar dos EUA para este ano é de US$ 886 bilhões. A Rússia, que está ganhando a guerra dos na Ucrânia com relativa facilidade, tem um orçamento de defesa equivalente a 12,64% do orçamento dos EUA. O orçamento dos EUA para a defesa é superior ao acumulado dos dez gastos seguintes no ranking dos maiores orçamentos de defesa dos países.

Outra face da crise dos EUA é revelada pelas finanças. A dívida pública dos Estados Unidos está em US$ 34,62 trilhões, conforme os dados divulgados em abril último. A dívida corresponde a 124,7% do PIB norte-americano. Quase US$ 2 bilhões são gastos diariamente apenas em juros da dívida nacional. Mesmo para o país mais rico da Terra, é muito difícil pagar, infinitamente, uma dívida que equivale a quase 125% do seu PIB. O país que sustenta a máquina de guerra mais cara do planeta (não necessariamente a mais eficiente), compromete mais de 30% de sua receita tributária federal com o pagamento de juros. Um detalhe: o que permite financiar a dívida é a demanda por dólares existente no mundo. Mas essa demanda tende a diminuir porque os países estão procurando reduzir sua dependência do dólar. Além do que, com a perda de influência dos EUA no mundo, tudo indica que os países não irão financiar infinitamente a dívida norte-americana.

O que falta para os EUA resolver um problema tão fundamental? É que quem manda no país ganha muito dinheiro com essa roda gigante especulativa: os bancos, grandes empresas, os ricos em geral. Ou seja, 0,5% da população, em prejuízo de 99,5% dos norte-americanos (é como no Brasil). A pobreza nos Estados Unidos, atinge cerca de 12% da população. Essa mesma economia, dominada pelo capital financeiro, precisa importar trabalhadores da América Latina para operar na economia real (fábricas, serviços em geral, limpeza, construção civil).

Para o governo dos EUA conseguir rolar a dívida, a demanda global por dólares e por títulos de dívida dos EUA deve se expandir permanentemente. Resultado que tem sido conseguido, até aqui, pelo argumento da força. Esse verdadeiro castelo de cartas se mantém porque os EUA têm o poder da senhoriagem, ou seja, pode imprimir, sem custo, uma moeda com aceitação e curso internacional. Nenhum outro país no mundo tem essa possibilidade e é isso que está se esfarelando.

O maior golpe econômico desferido contra os interesses norte-americanos está na área financeira: a substituição do dólar por moedas locais nos países do Brics, nas atividades financeiras internacionais. Processo que já iniciou. Isso irá atingir em cheio o poderio do império americano e mundial, em boa parte assentado na hegemonia do dólar, que fornece aos EUA um privilégio extraordinário.

A hegemonia do dólar já tem quase 80 anos, vem desde os Acordos de Bretton Woods, feitos em 1944. Em boa parte, a dominação imperialista se dá sobre essa hegemonia da moeda. Quando os líderes do Brics mencionam substituir o dólar pelas moedas nacionais, ou por uma futura moeda do bloco, significa quase uma ameaça de morte para o imperialismo, porque boa parte do poderio norte-americano está assentado sobre o privilégio de sua moeda nacional ser a moeda de curso mundial nas transações econômicas.

A decisão da Arábia Saudita em relação à não renovação do acordo de Petrodólares, está dentro deste quadro mais geral de crise política, social e financeira do imperialismo em geral, e do império norte-americano, em particular. A Arábia Saudita e outros importantes produtores de petróleo, percebendo as mudanças na ordem internacional, estão diversificando o seu comércio, reduzindo o peso do dólar norte-americano na sua carteira de ativos. Esse movimento, dentro de um quadro mais geral, de influência dos EUA no mundo, reduz a importância do dólar na economia global.

Com a decisão, a Arábia Saudita poderá aceitar outras moedas importantes como pagamento das suas exportações de petróleo. A previsão é que todos os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) sigam o exemplo da Arábia Saudita, com consequências só previsíveis em parte, para a influência do dólar do mundo. Vale acompanhar os desdobramentos desse complexo tabuleiro geopolítico mundial.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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