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Marcelo Marcelino

Membro Auditoria Cidadã da Dívida Pública (ACD) nacional, sociólogo, economista e cientista político, pesquisador do Núcleo de Estudos Paranaenses – análise sociológica das famílias históricas da classe dominante do Brasil e membro do Partido da Causa Operária – Curitiba.

Coluna

A dívida pública nasce como uma fraude na Constituição de 1988

A própria Constituição de 1988 abriu uma brecha para a promoção da roubo do orçamento público em benefício dos banqueiros e especuladores

Para compreendermos melhor o atual momento da política econômica do país, torna-se necessário retomarmos alguns dos mais importantes aspectos que constituem uma série de obstáculos para o crescimento e o desenvolvimento econômico e social brasileiro, dentre o mais importante, certamente está a força do imperialismo, com sua opressão e coerção costumeira. Esses aspectos se objetificam na forma de leis e práticas econômicas das mais diversas e colocadas em funcionamento através das instituições políticas, administrativas e tecnocráticas do Estado brasileiro. Vale destacar que as instituições no Estado capitalista estão a serviço da classe dominante e nos países atrasados ou periféricos sob o controle e o domínio do imperialismo, conforme a literatura marxista sempre apontou e empiricamente atestou por intermédio da materialidade; histórica e concretamente determinada pelas relações sociais de produção, como o próprio Marx explicava desde meados do século XIX.

As instituições necessitam de atores jurídico-políticos, econômicos e tecnocráticos para funcionarem de acordo com os ditames do imperialismo em conluio com os interesses da classe dominante nacional. Essa classe dominante nacional assume os principais postos chave nas empresas nacionais, instituições jurídicas, assembleias estaduais, congresso nacional, instituições tecnocráticas estratégicas e demais autarquias, secretarias, ministérios e outros aparelhos administrativos do Estado brasileiro.

A partir da denominada redemocratização, o Estado nacional brasileiro passa pela metamorfose burguesa em consonância com o imperialismo através das suas instituições “democráticas” como o congresso nacional. As primeiras eleições após a ditadura e a promulgação da Constituição de 1988 marcam a fase de reorganização do controle do capitalismo dependente brasileiro. No bojo dessa reorganização do capitalismo dependente brasileiro a economia política brasileira

Na Constituição de 1988, inclusive, introduziu-se um artigo mais do que suspeito em termos de inclusão de privilégios para o mercado financeiro nacional e internacional. O artigo 166, promulgado no interior da Constituição de 1988 ratifica “legalmente” a prioridade do pagamento de juros da dívida pública sobre todas as despesas e investimentos públicos do Estado brasileiro. Esse artigo entra em choque com o próximo, o importante “167” que exige que a denominada “Regra de Ouro” seja cumprida; que autoriza emissão de dívida apenas para o pagamento de despesas de capital; dentre elas, amortização da dívida, mas não despesas correntes, como por exemplo; juros nominais da dívida pública.

Nesse ponto de imbricação passamos a compreender de maneira central a gênese desse processo de intensificação da liberalização do capital financeiro no Brasil a serviço da burguesia rentista e do imperialismo na fase da globalização econômica e financeira neoliberal.

Para balizarmos nossa argumentação devemos mencionar alguns trechos do artigo da auditoria cidadã da dívida pública que aborda o tema com a devida apreciação a partir da citação dos artigos 166 e 167 da Constituição de 1988. De acordo com o portal da auditoria cidadã https://auditoriacidada.org.br/conteudo/a-fraude-do-166/ “A Dívida Pública brasileira vem consumindo quase metade do Orçamento da União, ano após ano, e mantém-se crescente através dos mecanismos do “Sistema da Dívida”. Tal “Sistema” encontra amparo legal em nosso país, envolto em um conjunto de normas que garantem a prioridade absoluta à remuneração dos detentores de títulos da crescente dívida brasileira.

Todavia, este aparato legal que favorece o sistema financeiro nasceu de maneira, no mínimo, curiosa. A Assembleia Nacional Constituinte (ANC), eleita em 1987, definiu em seu Regimento Interno três etapas como regras para condução dos debates, elaboração, votação e promulgação do texto da constituição Federal de 1988. Primeiramente, seriam votados em primeiro turno o Projeto de lei constitucional, as emendas e os destaques propostos por parlamentares constituintes.

O resultado dessa etapa era chamado de Projeto nos documentos do Diário da Assembleia Nacional Constituinte (DANC). Após aprovação em primeiro turno, o Projeto seria submetido a um processo de sistematização, antes da votação em segundo turno.

A sistematização visava corrigir inconsistências e erros na indexação e nas referências internas dos dispositivos no Projeto”. Por fim, o resultado dessa sistematização seria encaminhado para votação em segundo turno. No segundo turno só poderiam ser apresentadas e votadas alterações no vencido através de emendas supressivas ou corretivas, relativas a omissões, erros ou contradições. Importante ressaltar que, segundo o art. 29 do Regimento Interno da ANC, as omissões e erros sanáveis em segundo turno seriam as de natureza que não de mérito”.

A Assembleia Nacional Constituinte de 1987 institucionalizou a construção da carta constitucional de 1988 e que, portanto, daria guarida, por exemplo; a dispositivos constitucionais que serviriam de base legal para a construção do chamado “Sistema da Dívida Pública”. Esse sistema de endividamento proposital do Estado afim de assaltar os cofres públicos passa a ocorrer de maneira mais incisiva a partir do Plano Real em 1994 sob a batuta da transição governamental entre os presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso (FHC).

Uma estratégia entre a classe dominante brasileira do andar de cima em conluio com o imperialismo de matriz estadunidense acordado no Consenso de Washington de 1989 passa a ser colocada em prática como forma de impulsionar a acumulação e reprodução do capital em grande escala.

Mas para isso, percebemos que os antecedentes históricos são cruciais para a compreensão de como a Constituição de 1988 serviu de alicerce legal para a implementação desse sistema que desviou do orçamento trilhões de reais desde o começo do Plano Real com maior ênfase. Reparem na sequência da citação da matéria da auditoria cidadã como os artigos constitucionais 166 e 167 entram em conflito, mas mesmo assim, a fraude constitucional seguiu como alicerce da transferência de renda e riqueza do povo e do Estado brasileiro para as mãos dos potentados detentores do capital como já expressava Marx. Desta maneira, ainda de acordo com o mesmo artigo da auditoria cidadã:

“Dito isso, a ilegalidade surgiu no momento em que ocorreu alteração de mérito no Projeto, em artigo que tratava das diretrizes orçamentárias. A transcrição da redação aprovada em primeiro turno foi alterada com a adição de dispositivos inexistentes no texto constitucional e submetida a votação em segundo turno sob pretexto de reunir emendas supressivas e sanativas, embora tal dispositivo sequer tenha sido objeto de qualquer emenda apresentada.

Além de violar o art. 29 do Regimento Interno ao inovar no mérito, não consta no requerimento de fusão votado em plenário a assinatura, ou qualquer manifestação, do autor da proposta de Emenda onde foram adicionados os dispositivos ilegalmente propostos, tampouco rubricas dos autores das propostas de Emenda citadas para fusão e de 12 dos 14 líderes partidários, que comprovariam a autenticidade do que foi lido e votado em plenário.

Estas supramencionadas ilegalidades regimentais da Constituinte resultaram no art.166, § 3º, II, b, da Constituição da República:

“Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às
diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos
adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso
Nacional, na forma do regimento comum.
(…)
§ 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos
projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:
(…)
II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os
provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam
sobre:
(…)
b) serviço da dívida;”

Desse modo, a “Constituição Cidadã” foi promulgada com esta exceção, isentando os gastos com a dívida pública de indicar sua fonte de recursos. Ao redor deste privilégio Constitucional o restante do arcabouço jurídico que blinda o serviço da dívida foi tomando forma e dando respaldo para que, por exemplo, hoje o Banco Central possa elevar as taxas de juros (alegando ser medida necessária para conter a inflação) sem se preocupar de onde sairão os recursos para o pagamento de tais juros sobre a dívida.

Ademais, o art. 166, § 3º, II, b, conflita com o art. 167, III, também da Constituição da República, conhecido como “Regra de Ouro”, que autoriza emissão de dívida apenas para o pagamento de despesas de capital (dentre elas, amortização da dívida), vedando, deste modo, a emissão de dívida para o pagamento de despesas correntes (por exemplo, juros nominais da dívida pública). Este conflito veio à tona durante a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010, onde as investigações apontaram a contabilização ilegal de grande parte dos juros nominais como se fossem amortizações, burlando a Constituição.

Adriano Benayon e Pedro Antônio Dourado de Rezende denunciam no artigo “Anatomia de uma Fraude à Constituição”, que a adição desse dispositivo de mérito que causa imensas consequências ao País, sem ter ele sido discutido durante o processo legislativo, configura estelionato, tipificado no Art. 171 do Código Penal, além de contrariar o art. 37 da própria CR/1988:

“Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em
prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro,
mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”.

 

Para os autores o ato, além de ilegal, acarretou imensuráveis danos materiais e morais ao País, foi praticado sem publicidade, gerou vantagens para os “especuladores mundiais e locais”, e induziu a erro os constituintes, que assinaram o texto final da Constituição sem perceber a introdução do dispositivo jamais discutido durante seus trabalhos. Entendem ainda que o dolo, inerente ao crime de estelionato, é agravado por não ter sido a matéria trazida a público em nenhum momento pelos interessados no conteúdo “contrabandeado para dentro da Carta Magna” durante os dois anos da Constituinte”.

A sequência de absurdos remete aos mais variados roteiros conspiratórios que possamos imaginar em filmes de ficção e comprovam de largada, que essas aberrações introduzidas na Constituição de 1988 continuam impondo coerções a política econômica do país. A partir da política econômica adotada no Plano Real; principalmente nos mandatos de FHC a cartilha do Fundo Monetário Internacional (FMI) foi seguida à risca, onde o artigo 166 da Constituição foi o suporte legal para que o Banco Central impusesse uma política de juros estratosféricos, que chegaram a praticamente 50% ao ano; um recorde mundial absoluto na época, que impulsionou o rendimento dos banqueiros e rentistas nacionais e estrangeiros. A dívida pública de cerca de 70 bilhões de reais em 1994 passa a mais de 8 trilhões em três décadas de Plano Real.

O que chama muito a atenção agora em 2024 é o fato de o governo Lula anunciar cortes de gastos públicos e de investimentos sociais para sob a batuta do Ministério da Fazenda de Haddad. Tudo para salvaguardar os interesses dos vampiros ultraliberais no mercado financeiro nacional e internacional.

Bibliografia
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm;

BENAYON, Adriano; REZENDE, Pedro Antonio Dourado de. Anatomia de uma fraude à Constituição. Brasília/DF, 2006.

Disponível em: http://www.cic.unb.br/~rezende/trabs/fraudeac_files/fraudeac.pdf. Acesso: 30 jun. 2017;

FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados. 1a. ed. Brasília/DF: Inove, 2013. 387 p.;

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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