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Coluna

A ditadura militar e a classe média em Ainda Estou Aqui

A ditadura militar representa o sequestro de um país inteiro, não só de indivíduos

O novo filme do diretor brasileiro Walter Salles, Ainda Estou Aqui, tem recebido uma quantidade extraordinária de publicidade a ponto de já ser considerado um candidato certeiro ao Oscar de 2025. Nas apostas, destaca-se a atriz Fernanda Torres por sua atuação como Eunice Paiva. 

Diante de tanta propaganda, escolhi para essa análise três assuntos distintos: a experiência de assistir ao filme no cinema, a realização cinematográfica em si e a sua abordagem do tema da ditadura militar na atual conjuntura histórica.

O mais positivo que consigo destacar da minha experiência com Ainda Estou Aqui é o de tê-lo assistido em uma sala de cinema. Os streamings têm roubado a audiência das salas, e confesso que me incluo nesse novo comportamento.

É sempre muito bom ir a um cinema, uma experiência incomparável com a tela da televisão, que dirá com a de um celular ou computador. Portanto, para minha grata surpresa e felicidade, participei de uma sessão com plateia esgotada, ávida por assistir a um filme brasileiro. Isso é notável. Resultado da propaganda, sem dúvida. Mas ainda assim é notável.

Eu não estava no circuito da Avenida Paulista, onde se concentram em São Paulo os cinemas mais alternativos, mas em um shopping center, em um bairro de classe média. Ao final da sessão, aplausos tímidos e manifestações de “ditadura nunca mais”. Por que essa plateia se emocionou tanto?

Porque a representação da protagonista, Eunice, de seu marido Rubens e de seus cinco filhos mostra uma perfeita família de classe média. O diretor usa esse expediente para fazer com que sua audiência se identifique com ela.

Boa parte do enredo visa representar a vida feliz da família do ex-deputado Rubens Paiva. Eles moram em um lindo sobrado bem em frente à praia de Copacabana, em um Rio de Janeiro onde se podia deixar o portão aberto. Almoços com amigos, a viagem da filha mais velha para Londres, jogos de vôlei na praia, MPB, a adoção de um cachorrinho, o suflê perfeito e muitas, muitas fotografias são compartilhados conosco.

Tudo isso é interrompido e acontece o pior. Como em um filme de terror, os agentes do Doi-Codi prendem Rubens Paiva, Eunice e sua filha de 15 anos. Tudo desmorona. Eunice tem que lidar com a falta de informação, de dinheiro, muitas ameaças e o medo. Muda-se então para São Paulo e deixa para trás a vida idílica.

Não é objetivo de Walter Salles discutir as contradições brasileiras e os motivos que levaram o país a passar pela ditadura militar. A ditadura é um fato dado, que não precisa de esclarecimentos. 

Podemos refletir que as condições de produção, incluindo a participação de grandes conglomerados financeiros e de mídia nacionais e a própria visão de mundo dos autores, auxiliaram nas escolhas formais e na apresentação dos temas. 

Seu enredo, nesse sentido, é bastante convencional, focado na jornada da heroína Eunice da adversidade à superação, uma forma típica de visão de mundo que a classe dominante impõe e que recheia inúmeros filmes de Hollywood, novelas e programas de TV. Como é baseado em fatos reais, claro que busca também honrar a imagem de sua personagem principal. 

Um ponto, no entanto, merece ser destacado. Walter Salles não se preocupa em mostrar a vida de Eunice após a mudança para São Paulo, ou seja, o momento de superação no enredo, em detalhes. As décadas passam com a dramatização de momentos-chaves, como o recebimento do atestado de óbito de Rubens Paiva, já nos anos 1990, e sua formação em direito.

Isso faz o filme ganhar, ao invés de perder, pois apesar dos anos passarem, a ditadura, para aqueles que a vivenciaram, nunca é de fato superada. Ela se mantém presente o tempo todo e seu impacto é para o resto da vida. Com a escolha formal, Salles não deixa de mostrar a superação, mas sem mergulhar no final feliz fácil que poderia advir de tal abordagem.

Já a representação da ditadura militar na atual conjuntura histórica é o ponto mais fraco do filme. Este ano, completamos 60 anos do golpe e essa película é o que a cinematografia nacional produziu de mais relevante. 

As torturas e os desaparecimentos foram crimes contra a humanidade. Mas, além desse maligno sintoma, a essa altura do campeonato, está na hora de termos filmes mais ousados sobre o tema, visto que a ditadura militar não só sequestrou indivíduos, mas também todo o desenvolvimento do país. 

Fica evidente que o objetivo do filme é fazer com que a classe média brasileira dos dias atuais se identifique com o drama de Eunice de modo a repudiar a ideia de uma nova ditadura. Se aconteceu com ela, pode acontecer com qualquer um. Dessa forma, há uma certa função didática que, no atual momento, soa antibolsonarista, como uma espécie de “ele não” cinematográfico.

Nos últimos 10 anos, no entanto, fomos testemunhas de pelo menos dois golpes de Estado (contra Dilma e contra Lula, com a sua prisão) cujo objetivo foi o de interromper o desenvolvimento econômico, social e político do Brasil, como foi o de 1964. Atualmente, vemos os mecanismos de repressão e de censura se multiplicarem e se tornarem norma. Golpes de estado são armas da burguesia nacional e da burguesia imperialista contra a nossa soberania.

Ao focar na história individual de Eunice, após 60 anos de um acontecimento tão trágico, o filme deixa de fora, mais uma vez, a raiz do problema – a luta pelo desenvolvimento do Brasil dentro do capitalismo -, reduzindo o impacto que essa tragédia teve na vida de todos nós até hoje. A obra é assim resultado claro da atual visão de mundo da pequena-burguesia progressista. Há até algo de identitário em Eunice. 

Lembrando que ainda somos um país ocupado por forças armadas e por forças policiais militares que têm como único inimigo sua população civil desarmada, principalmente nas periferias e favelas, locais onde a ditadura é sempre, é agora.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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