Talibã

Uma concepção metafísica disfarçada de marxismo

Roberto Ponciano acha que luta entre um país pobre e uma potência imperialista não é luta de classes e tem uma visão anacrônica sobre o Talibã

Virou costume há muito tempo citar Marx e Lênin sem ter a menor noção do que eles escreveram, apenas para tentar embasar argumentos fantasiosos supostamente marxistas. É o que faz Roberto Ponciano em uma coluna para o Brasil 247.

Buscando justificar sua tese de que a guerra da Rússia e do Afeganistão contra o imperialismo não seria algo progressista porque na verdade não passariam de guerras entre a burguesia, o autor comete uma verdadeira impostura intelectual. Diz que Marx, Engels e Lênin sempre levaram em consideração que “para se determinar se algum movimento ou guerra é justo ou injusto, não basta uma visão maniqueísta de se um país é antitético aos EUA ou não, mas se intrinsecamente estes movimentos são de libertação dos povos, do proletariado, da grande maioria da população de um determinado país”.

“A maior prova disso”, escreve o impostor, “são os textos de Marx posteriores a derrocada da Primavera dos Povos de 1848-1851, em que ele faz uma análise detalhada das perdas e da eliminação (inclusive física) da vanguarda de diversos países, prevendo que, por pelo menos uma década, não haveria movimento revolucionário na Europa”.

O que ele não faz a mínima ideia é que sua afirmação passa longe da posição de Marx e Engels a respeito da luta das nacionalidades oprimidas contra as nações opressoras. Marx defendeu os húngaros oprimidos contra os austríacos opressores e Engels teceu elogios aos primeiros, mesmo sendo seus líderes aristocratas. Os pais do socialismo científico apoiaram a luta dos poloneses contra o império russo, dos irlandeses contra a Inglaterra, enfim, das nações oprimidas contra os seus opressores. Eles não estavam preocupados em saber se os líderes da revolta dos oprimidos se vestiam de tal maneira, tinham tais ideias, usavam determinado corte de cabelo. Seus motivos eram políticos: a defesa de uma nação oprimida contra o imperialismo.

Lênin seguiu e desenvolveu essa tradição dos revolucionários marxistas de distinguir os capitalistas nacionais de países oprimidos dos capitalistas monopolistas. Foi ele quem disse que toda guerra de um país oprimido contra uma potência opressora é uma guerra revolucionária. Por isso o pedante Ponciano simplesmente deturpa e subverte a posição de Lênin ao escrever que para o líder bolchevique “a única guerra justa era a guerra de Libertação de classe contra as elites em cada país”.

Ponciano acha que uma guerra entre países não é luta de classes:

Virei crítico contumaz do que tenho denominado (e alguns outros articulistas também) de “campismo”. Uma visão que reduz o mundo a um tabuleiro de war e no qual as pessoas, as classes sociais e os povos desaparecem. Há inclusive um esforço para denominar este reducionismo como marxismo, a um arremedo de maniqueísmo, visão mecanicista de história e historicismo de direita.

Se na Primeira Guerra Mundial Lênin e Trótski não defenderam nenhum país, foi precisamente porque se tratava de dois blocos imperialista em luta um contra o outro, e não um país ou grupo de países imperialistas guerreando em frente única contra um país ou um bloco de países oprimidos. Mas mesmo assim, isso não significa que uma guerra interimperialista não seja uma guerra entre classes sociais. Tudo no mundo é luta de classes. Se não, uma guerra seria o quê? O grande analista Ponciano, que gosta de pensar que está caçoando com a suposta incompreensão do marxismo dos outros, demonstra que ele mesmo é um completo ignorante da teoria marxista da luta de classes.

Dizer que a defesa da Rússia ou do Afeganistão em uma guerra contra os EUA é “campismo” é uma verdadeira idiotice motivada por indigência intelectual. Não se trata de defender que existam dois “campos” em luta, dois blocos de países, mas sim de entender que existem diversos tipos de divisões econômicas e sociais distintas, sendo as mais antagônicas estas: os países imperialistas (de desenvolvimento capitalista avançado) e os países oprimidos por aqueles (de desenvolvimento capitalista atrasado).

Assim, Ponciano falsifica as motivações e pensamentos daqueles que estão (como nós) do lado da Rússia e do Afeganistão contra o imperialismo. Ele diz que os “campistas” transformam “a Rússia de Putin numa espécie de defensora dos ideais de Liberdade”. Nós, que apoiamos a Rússia contra o imperialismo, não a apoiamos por acreditar que Putin é um libertador, mas justamente porque a guerra da Rússia na Ucrânia nada mais é do que uma guerra por procuração imposta pelo imperialismo à Rússia, e a Rússia, como um país atrasado, está se defendendo da agressão imperialista. Sempre apoiaremos, seguindo os passos de Marx, Engels e Lênin, um país atrasado enquanto este lutar contra o imperialismo. Se é uma guerra por procuração, em que a Rússia assume a posição de defesa contra o imperialismo, a postura correta de qualquer um que se diga marxista, bem como da classe operária, mesmo ucraniana, é estar ao lado da Rússia.

O autor utiliza a mesma acusação contra os que (como nós) defendemos o Talibã contra o imperialismo. “O problema da análise”, diz ele, “era a paixão repentina pelo Talibã [quando este liderou a insurreição de 2021 que expulsou os EUA do Afeganistão], transformada, da noite para o dia em guerrilheiros da Liberdade.”

“Fui um dos poucos que se colocaram contra essa visão romanceada do Talibã”, acredita Ponciano, que por estar tão fora da realidade talvez não tenha percebido que o que fez foi pegar a rabeira de toda a imprensa capitalista internacional. “De uma hora para outra, nossos geopolíticos, que se outorgam como radicais marxistas, esqueceram completamente qual era o caráter de classe dos mujahedins Talibãs. Tornaram-se ahistóricos, da noite para o dia. O Talibã sequer pode se considerar uma guerrilha totalmente afegã, boa parte dos soldados arregimentados para esta guerra o foram na Arábia e em outros países árabes, para uma ‘guerra santa’ contra os ‘infiéis russos’.”

Temos aqui uma concepção verdadeiramente metafísica do que é o Talibã, que está fora do tempo e do espaço. O Talibã foi criado há mais de 40 anos. Como um típico fenômeno nacionalista burguês, ora ele se aproxima, ora ele se distancia do imperialismo. Foi assim com Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón e praticamente todos os movimentos nacionalistas ao longo dos últimos 100 anos. Ou será que Osama Bin Laden estava a serviço da CIA quando explodiu as Torres Gêmeas? As forças que os Estados Unidos criaram naquela guerra contra a URSS acabaram por se voltar contra eles exatamente porque tinham um caráter de classe diferente do imperialismo, para a surpresa de Ponciano, que deve pensar que a base social do Talibã são os todo-poderosos banqueiros afegãos. Quando ele diz que o Talibã nem pode ser considerado como afegão, está demonstrando seu reacionarismo e ignorância, pois o problema do Afeganistão, assim como o de toda a Ásia Central, Oriente Médio, Norte da África e, em última instância, em todo o mundo fora dos EUA e da Europa Ocidental, é multinacional. Por isso tantos membros do Talibã provenientes da Arábia Saudita, da Síria, do Irã, do Paquistão. É uma luta comum a todos os povos oprimidos do mundo contra seu grande inimigo, o imperialismo.

Ao comparar o apoio dado ao Talibã por militantes como os do nosso jornal com o apoio dos EUA a Augusto Pinochet, o colunista repete a mesma ladainha fabricada pela propaganda imperialista: a contradição na sociedade ocorre entre democratas e autoritários. Não sabe que Pinochet era um agente do imperialismo, enquanto o Talibã liderou uma insurreição notadamente anti-imperialista.

Por último, o douto articulista revela seu mais completo desconhecimento do que ocorreu no Afeganistão em 20 anos de ocupação norte-americana. Ele se alimenta e espalha as mentiras da imprensa imperialista de que o Talibã proibiu as mulheres de saírem na rua sem autorização ou que as condena à morte “por toda e qualquer violação da Xaria” – ONGs estrangeiras foram impedidas de contratar mulheres, a imprensa estrangeira foi censurada e a proibição de acesso à universidade só atinge à minúscula camada abastada das mulheres afegãs. Um verdadeiro idealista e moralista, Ponciano não percebe que as medidas conservadoras do Talibã contra as mulheres demoraram um ano e meio para serem tomadas e mesmo assim elas têm um claro motivo político imediato, têm um caráter provisório que busca defender o regime da desestabilização imperialista. São medidas confusas, não são as melhores medidas, medidas que poderiam ser democráticas, mas como exigir democracia em uma região que está séculos atrasada, tanto culturalmente como economicamente?

Nosso Nostradamus pseudomarxista termina seu texto dizendo que sua “profecia” se concretizou: após seis meses da expulsão dos EUA do Afeganistão ninguém mais escreveu textos em defesa do Talibã. Na verdade, já faz um ano e meio daquele acontecimento e nós, por exemplo, continuamos a denunciar a opressão sofrida pelo povo afegão, liderado neste momento pelo Talibã, do imperialismo, que bloqueou todo o dinheiro do governo afegão no exterior, impôs um embargo econômico ao país e financia grupos armados opositores, resultando na fome de mais de 90% da população e na mais absoluta miséria daquele país. O que Ponciano poderia afirmar com absoluta certeza é que praticamente ninguém denuncia essa opressão do imperialismo. Mas não faz, porque, ao invés disso, ele mesmo prefere esconder a realidade do Afeganistão e atacar aqueles que se defendem dos verdadeiros opressores.

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