Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Cinema

Um século em 17 minutos

"Essa semana assisti a um curta-metragem surpreendente e que motivou a reflexão que segue. Trata-se do filme The Potemkinists, dirigido pelo jovem cineasta romento Radu Jude"

Essa semana assisti a um curta-metragem surpreendente e que motivou a reflexão que segue. Trata-se do filme The Potemkinists, dirigido pelo jovem cineasta romento Radu Jude em 2022.

Em apenas 17 minutos, Jude consegue resumir o que significa a pós-modernidade, ou seja, a lógica cultural do capitalismo atual (Fredric Jameson), de maneira brilhante, crítica e irônica, usando como pano de fundo um monumento nacional de seu país e outro monumento, esse da cinematografia mundial, O Encouraçado Potemkin, que Sergei Eisenstein dirigiu em 1925.

Ao contar a história dos marinheiros que se amotinam em 1905 contra as péssimas condições a bordo e que impactará em uma revolta em Odessa, hoje parte da Ucrânia, o cineasta russo retratou um momento importante pré-Revolução Russa e, ao mesmo tempo, estabeleceu as bases de um cinema de vanguarda e experimental.

A estátua escolhida por Jude é chamada de Monumento à Juventude, tem 38 metros de altura e foi construída em 1988, um ano antes da queda do presidente comunista Nicolae Ceausescu. Foi construída às margens do Danúbio, no canal que o liga ao Mar Negro, como homenagem aos trabalhadores que construíram esse canal.

Na biografia de Ceausescu consta uma Medalha do Cruzeiro do Sul, homenagem do governo brasileiro em 1975. Todo o resto é somente a velha receita da mídia ocidental de demonizar comunistas para justificar sua execução sumária em 1989. Nada diferente do que chamam Maduro ou Putin hoje em dia. Então é de desconfiar muito e correr atrás de boas fontes históricas.

De concreto, é que o filme usa esses dois momumentos para fazer uma reflexão política que é crítica principalmente ao nosso atual momento histórico.

Na história, um escultor (Alexandru Dabija) tenta obter financiamento de uma burocrata da cultura (Cristina Draghici) para restaurar o Monumento à Juventude. Seu objetivo é que se torne uma homenagem aos marinheiros do Encouraçado Potemkin (ambiguamente ao filme de Eisenstein) que buscaram asilo na Romênia após o episódio em Odessa (daí Os Potemkinistas do título).

A gigante escultura de concreto, inspirada em uma flama ou em anjo (depende da fonte), é, ao mesmo tempo, o cenário do filme e o retrato do que Walter Benjamin discorre sobre as ruínas no capitalismo. Está pixada, saqueada, abandonada e suja. Parte de seus afrescos de ferro estão no Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma). Quem diz que o imperialismo não tem nada a ver com isso, certo?

Para conquistar o apoio da burocrata, o escultor vai tecendo comentários que se contradizem de modo a concordar com ela e, ao mesmo tempo, manter certa integridade. Suas contradições incluem comentários a Eiseinstein, Putin e outros.

Ela é claramente de direita, capitalista e nem quer saber do passado comunista do monumento. Ao final, o escultor consegue alguma coisa de seu intento: uma restauração que ele mesmo aponta como pastiche.

Com precisão e concisão, Jade mostra com essa situação várias questões atuais. Há uma discussão, presente também no Brasil, sobre a preservação da memória e de monumentos históricos, que são derrubados ou transformados de acordo com a vontade política do momento.

Há também a reconstrução do sentido da obra de arte através da referência superficial, do apagamento da história e da imposição de uma ideologia reacionária. O magnífico Monumento à Juventude torna-se homenagem ao que a burocrata e o artista contemporâneos querem.

Com o filme de Eisenstein, também objeto de mutilação (intencional, dentro da proposta do filme), o diretor romeno une duas pontas: o começo e o fim do sonho revolucionário, o começo e o fim de uma arte revolucionária e de vanguarda. Nada mais justo para representar a sandice dos dias em que vivemos.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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