No dia 18 de fevereiro de 2020, três anos atrás, veio a falecer o baterista de jazz Jon Christensen. Isso foi nos primeiros meses do início da pandemia de covid-19, para a qual todas as atenções estavam voltadas e da qual decorreram milhões de mortes, deixando quaisquer necrológios devidamente apagados diante de tamanho infortúnio; entretanto, atualmente, passados três anos de sua morte e com o final da pandemia, cabem algumas palavras sobre um artista reconhecidamente importante na história da música.
Devido a minha paixão pela bateria e demais instrumentos musicais de percussão, quando adolescente, sempre busquei me manter informado sobre bateristas e percussionistas inovadores; porque boa dessas informações, evidentemente, estavam nos discos, fitas, CDs e DVDs de então, atento aos trabalhos de Naná Vasconcelos, ainda me lembro da alegria de ter nas mãos o álbum “Saudades”, lançado no Brasil pela gravadora ECM em 1979.
O trabalho de Naná Vasconcelos não foi o único álbum da ECM a ser lançado no Brasil; juntamente com o percussionista brasileiro, vários artistas, tais quais Keith Jarrett, Chick Corea, Jack DeJohnette, Charlie Haden, Egberto Gismonti etc. fizeram parte dos projetos da gravadora. Entre eles, os álbuns “Solstice”, 1975, de Ralph Towner, “Photo with…”, 1979, de Jan Garbarek, e “Nude ants”, 1980, de Keith Jarrett, todos com a participação de Jon Christensen tocando bateria.
A bateria, igualmente a todos os instrumentos musicais, não surgiu prontamente do nada, há histórias da bateria a serem contadas, envolvendo técnicas e concepções em sua formação. Entre seus percussores, é necessário lembrar de Chick Webb (1905-1939) e Viola Smith (1912-2020), dos quais, felizmente, há numerosas fotografias mostrando as diferentes configurações da bateria no início de sua formação. Seja em Webb, seja em Smith, há sempre a presença do bumbo, da caixa, dos pratos chimbal e de alguns pratos de ataque; o número de tambores, porém, varia bastante, além do mais, Webb acrescentava campanas e temple blocks e Smith, tímpanos e vibrafones aos respectivos conjuntos de instrumentos. Com o passar dos anos, boa parte deles sumiu, ficando apenas os tradicionais pratos chimbal, bumbo, caixa, pelos menos dois tambores – um agudo, outro grave – e, no mínimo, um prato solto de condução, que é o conjunto no qual se notabilizaram Art Blakey, Max Roach, Elvin Jones, os bateristas de bossa-nova Edson Machado, Milton Banana e Rubens Barsotti, e os de rock Ringo Star e Charlie Watts.
Os bateristas de rock, principalmente os de rock progressivo e de heavy metal, incrementaram a bateria com bumbo duplo e numerosos pratos e tambores. Tais conjuntos não demoraram a ser incorporados no jazz rock pelos bateristas Billy Cobham e Simon Phillips, para citar os mais expressivos; no Brasil, Zé Eduardo Nazário e Realcino Lima Filho, certamente por influência de Hermeto Pascoal, com quem ambos tocaram, acrescentaram panelas, sinos, frigideiras, bandejas, tupperwares etc. a suas baterias. Outras artistas, porém, embora contemporâneos dessas inovações, permaneceram fiéis ao conjunto tradicional, optando por explorar ao máximo os recursos de apenas um bumbo, caixa, dois tambores e poucos pratos, entre eles, os saudosos Paul Motian e Jon Christensen.
Para valorizar ainda mais seu trabalho, vale a pena escrever algumas palavras sobre as muitas técnicas de tocar bateria. A bateria envolve as duas mãos e os dois pés para ser tocada, com manipulações bastante específicas dos dedos das mãos e dos pés, abrangendo, portanto, movimentos do tronco e dos quatro membros do músico. Outrossim, dependendo do ritmo, a distribuição das linhas de força através do corpo é diferente: (1) nos ritmos de samba, salsa, rock, por exemplo, o corpo pode ser pensado na linha da cintura, com as pernas fazendo a marcação e os braços, as subdivisões; (2) no jazz e em algumas adaptações da música indiana para bateria, a linha pode ser estabelecida de forma cruzada, com a mão condutora articulada com o pé do prato chimbal e a mão que divide o ritmo, com o pé do bumbo. Essa divisão é bastante esquemática; obviamente, quando se toca, os bons bateristas combinam as duas técnicas, com alguns, tais quais Christensen, acrescentando a elas concepções percussivas da música erudita, em que cada parte da bateria é considerada independentemente, enfatizando-se o conjunto de percussão, isto é, os fundamentos da bateria.
Por fim, enquanto baterista de jazz, Jon Christensen não se pretendia apenas acompanhante dos demais instrumentos solistas, mas se via solista também; isso se evidencia tanto ao acompanhar os solos dos demais participantes da sessão quanto nos solos de bateria.
A arte é um universo bastante complexo, cuja capitalização nunca estará à altura de acompanhar, por isso, com a abominável tendência à repetição e à normatização, a propensão da cultura de massas é esmagar quaisquer singularidades, apostando na mesmice. O jazz, caracterizado pela insistência em reformular constantemente a linguagem musical e por estar baseado predominantemente em improvisos, implica a singularidade e a criatividade dos músicos, indo de encontro, com veemência, às assimilações e repetições da cultura de massas, baseada na decadência da arte. Esse combate não é apenas estético, pois o jazz sempre esteve articulado com lutas sociais, admitindo, em suas fileiras, negros, ciganos, judeus e mulheres, cujas lutas refletiram diretamente em sua expressão, vale lembrar de Billy Holiday e sua inesquecível interpretação de “Estranhos frutos”, ou das manifestações políticas de Lois Armstrong, Duke Ellington e, recentemente, de Charlie Haden à frente da Liberation Music Orchestra.
Jon Christensen participou ativamente de um dos movimentos estéticos do jazz, o chamado neo-cool, registrado majoritariamente pela já mencionada gravadora ECM, sob a direção de Manfred Eicher. Desde seu nascimento, o jazz, apenas para traçar algumas linhas, afirma-se em revoluções ao conceber o jazz tradicional, o bebop, o cool-jazz, o hard-bop, o jazz rock e o neo-cool, cuja principal característica talvez seja a abertura do jazz para a música do mundo. Sempre aberto ao diálogo com outras músicas, por exemplo, os ritmos caribenhos e a bossa-nova nos anos 1960, o jazz, com o neo-cool, interagiu com as músicas indiana, médio-oriental, latino-americana e demais ritmos brasileiros, incluindo as músicas dos caiapós, contemplada no álbum “Sol do meio-dia”, 1978, de Egberto Gismonti com Ralph Towner, Collin Walcott, Jan Garbarek e Naná Vasconcelos, também pela ECM.
Por fim, o vídeo do Quarteto de Ralph Towner, gravado em 1978, com Jon Christensen tocando bateria, está completo no YouTube neste endereço:









