Mais uma do identitarismo

“Transfake” e a morte do teatro

Segundo o identitarismo, não deveria existir a arte de interpretar, pois um ator só poderia ser ele mesmo no teatro

Lisboa, Portugal, dia 19 de janeiro, quinta-feira. No Teatro São Luiz, no meio da apresentação da peça “Tudo sobre minha mãe”, adaptação do filme de Pedro Almodovar, uma pessoa trans, se apresentando como Keyla Brasil, interrompe a peça, invade o palco e começa a fazer um discurso.

Só de calcinha e com os seios nus, Keyla Brasil, que se apresenta como atriz, performer e prostituta, protesta contra a presença de um homem no elenco da peça interpretando uma transsexual. Segundo o discurso, esse fato seria “uma grande violência”, um “apagamento”, um “assassinato” da “idenidade travesti”.

A interpretação por atores homens de personagens travestis está sendo chamada por esse grupo de “transfake”. O termo em inglês, bem apropriado para a natureza imperialista do movimento identitário, significa algo óbvio: um ato ator que interpreta um personagem trans não é trans de verdade.

Aí, segundo essa lógica, para fazer o papel de personagens travestis no teatro ou no cinema é legítimo apenas contratar atores e atrizes transexuais. Em última instância, deixando de lado o entulho ideológico e moral da discussão, o debate é econômico: travestis e transexuais acham injusto não serem contratadas para papéis de travestis e transexuais.

Ao invés de se esconder atrás de ideias que não tem nenhuma base na realidade como dizer “assassinato de identidade”, o movimento deveria abrir o jogo e dizer: esse é um problema econômico, queremos o emprego dos artistas que não são transexuais. A própria Keyla Brasil, no seu protesto: “Sabe por que eu trabalho como prostituta?… Porque nós não temos espaço para estar aqui nesse palco, nesse lugar sagrado”. Em resumo, segundo essa lógica, a prostituição poderia se reduzir a uma vaga num elenco de teatro, um argumento bem difícil de engolir.

“Desce do palco! Tenha respeito por esse lugar”, com essas palavras, a travesti iniciou seu protesto. Com essas palavras também, outra natureza do movimento identitário se revela: o gosto pela censura e pelo “cancelamento”.

Estamos diante de um movimento reacionário que procura através da imposição sobre as outras pessoas, conseguir um lugar ao sol no mercado de trabalho.

Um movimento político legítimo procura se organizar com base em pautas concretas, procura reivindicar direitos e melhores condições. O identitarismo é um movimento – se é que podemos chamar assim – cuja ideologia é tipicamente neoliberal. É a competição, é a típica método capitalista que prega que para conseguir alguma coisa na vida você precisa pisar na cabeça do outro. Para isso, os identitários inventaram uma ideologia para justificar essa política ultra-reacionária e ainda passar um leve verniz progressista sobre ela.

Assim, um ator ou uma atriz transexual não procura fazer um movimento que desenvolva seu trabalho artístico, que procure, de maneira coletiva, dar condições de trabalho, que procure integrar esses artistas nos meios artísticos, que reivindique do governo condições iguais de financiamento para companhias de teatro, de dança etc. Não, para o identitarismo, o negócio é calar o outro, é tratar o outro como adversário. E esse outro é o governo burguês, o capitalista? Não, é um artista que está representando. Esse artista é o maior inimigo, mais inimigo ainda se ele está representante um papel numa peça que serve inclusive à causa dos transexuais, como é o caso em questão.

O episódio em Lisboa é um exemplo muito interessante do método de ação do identitarismo. “Desça do palco”, é assim que funciona.

À parte o debate política, é preciso também chamar a atenção para o absurdo da ideia de que apenas artistas trans poderiam interpretar artistas trans. Em última instância, essa lógica é o fim do teatro e de qualquer arte de interpretação.

Só faz sentido a arte de criar e interpretar um personagem se esse ator ou essa atriz estão interpretando algo que não eles mesmos. Isso vale inclusive nos casos raros, que pode ocorrer, em que o ator interpreta ele mesmo. Em última instância, só pode interpretar um adulto não pode interpretar uma criança, um polonês não pode interpretar um britânico, um gay não pode interpretar um heterossexual, um judeu não pode interpretar um cristão e assim vamos ao infinito até chegarmos à conclusão de que não pode mais existir a arte cênica.

Levada às últimas consequências, a ideia desse movimento “transfake” é a morte do teatro. Quando Keyla Brasil diz para “respeitar esse espaço”, na verdade é ela quem está desrespeitando o teatro. Não apenas o desrespeito óbvio de interromper uma peça gritando com os atores – coisa que eventualmente poderia ser legítimo – mas que em geral lembra mesmo o que costumavam fazer as ditaduras e milícias fascistoides contra apresentações que desagravam a moral. Mas é um desrespeito à arte de um modo geral ao obrigar que determinada obra siga os preceitos morais determinados por tal ou qual grupo.

É uma ação reacionária porque procura inviabilizar qualquer liberdade de criação artística em nome de uma moralidade que só está na mente de uma pequena porção de pessoas. Por esse método, a arte está sujeita a qualquer tipo de intervenção externa em nome de uma moralidade que pode ser a “trans” de agora, mas com certeza será a fascista de amanhã.

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