
Uma dica para aqueles que aceitam (ou mesmo gostam e aprovam) da “censura do bem” que parece consenso entre os formadores de opinião da esquerda: leiam em qual contexto Karl Popper – um liberal profundamente anticomunista – proferiu sua famosa frase. Entendam que a perspectiva de “não tolerar os intolerantes” pressupõe que alguém terá o poder de arbitrar a intolerância. Para Popper existe uma instância acima das demais que poderá arbitrar o que se constitui “intolerável” para ser expresso publicamente. Quem seriam os vestais a determinar quais palavras são permitidas e quais devem ser proibidas? Quem, dentre nós, está acima do bem e do mal?
No caso do Brasil, o ministro Alexandre de Moraes – ou o STF inteiro, que inclui Fux, Fachin, Kassio Nunes Marques, André Mendonça – tem o poder de determinar que algo (ou alguém) rompeu os limites da livre expressão. Ou seja: no caso recente, quem determinou o limite da tolerância é um sujeito que foi colocado na posição de Ministro da Suprema Corte através de um presidente que chegou ao cargo por um golpe de Estado. É justo admitirmos isso? Ultimamente temos testemunhado um crescente complacência com a censura, que teoricamente estaria empenhada em combater “fake news”. O influencer Monark teve suas contas pessoais bloqueadas no âmbito do inquérito que investiga os atos de vandalismo de 8 de Janeiro nos quais foram invadidos e depredados os prédios que abrigam os três poderes. Em abril último, Moraes proibiu o influencer de espalhar fake news sobre a atuação do Supremo ou do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para além disso lhe aplicou uma multa de 300 mil reais. Porém, é justo impedir que ele tenha qualquer produção de conteúdo proibida pela justiça, apenas porque suas tolices desagradam os encastelados donos do poder? Desde quando oferecemos o poder de censura para ministros do supremo?
No caso de Popper “intolerância” seria a defesa do socialismo e eliminação do controle privado dos meios de produção – algo intolerável para um liberal. Mas quem é Popper na fila do pão da democracia? Sua visão de “Sociedades abertas” é uma clara contraposição ao marxismo e ao totalitarismo, mas é um caminho de liberalismo burguês que conduziu o planeta à destruição que testemunhamos e ao neofeudalismo corporativo que se estabelece sobre o planeta.
Não esqueçam que a “intolerância com os intolerantes” é o mantra das forças de ocupação de Israel, que usam dessa mesma lógica para dizimar os “intolerantes palestinos”. Na Arábia Saudita, cabeças rolam contra “intolerantes” que atentam contra o poder absoluto de seus monarcas. No Brasil essa estratégia será usada sempre que houver vozes contrárias à democracia burguesa, controlada pelas corporações e a elite financeira. Esse é o principal tropeço da esquerda liberal: não perceber que essa censura a certos termos, temas e expressões serve sempre aos poderes constituídos; é uma manobra intrinsecamente conservadora, e que mais cedo ou mais tarde será usada – como tantas vezes foi no passado – para atacar a organização dos trabalhadores e dos partidos de raiz operária.
Por fim, diante dos descalabros notáveis dos ministros do STF durante toda a sua história, sempre se aliando aos golpes e aos tiranos da ocasião, podemos dizer que Alexandre de Moraes tem méritos em salvaguardar a nossa frágil democracia diante dos ataques explícitos de Bolsonaro e sua quadrilha. Fosse Fux, ou Facchin e talvez a farra golpista seria ainda pior. Entretanto, não fez nada além da obrigação de punir como crime o que realmente é crime. Todavia, acreditar que ele é o guardião moral dos nossos valores democráticos não faz sentido algum. Alexandre representa os velhos valores da direita, o conservadorismo mais tacanho e a perspectiva punitivista mais anacrônica do direito. A distância entre Alexandre e Moro é muito menor do que imaginamos, e inclusive o primeiro já deu total apoio ao segundo.