Em 1973, o famoso artista plástico norte-americano Richard Serra disse que “se algo é grátis, você é o produto”. À época Serra referia-se ao avanço das emissoras de televisão que transmitiam sua grade de programas gratuitamente, buscando viabilizar sua atividade através da receita advinda dos intervalos comerciais exibidos. Num certo momento, os comerciais tornaram-se também a parte principal da receita de emissoras que ofereciam seu serviço por assinatura, mas hoje não analisaremos esse absurdo hoje normalizados.
O ponto de Serra era que a cultura transmitida pelos canais de televisão não era a mercadoria que ofereciam, eram seus espectadores, que eram oferecidos às empresas que transmitiam propaganda de seus produtos nos intervalos comerciais e que pagavam por esse tempo de exibição para as emissoras.
Esse modelo transferiu-se quase que naturalmente para a internet. Ao contrário das emissoras, que pouco sabiam sobre seu espectador à exceção de uma estimativa grosseira de sua localização, monopólios da internet como Facebook, Google e outras passaram a monitorar a atividade de seus usuários mesmo fora de seus portais para otimizar a conversão das propagandas que veiculam em nome de seus verdadeiros financiadores.
Para alguém que busca vender um produto nessas plataformas, as ferramentas são praticamente ilimitadas. É possível filtrar por idade, localização (com muito mais precisão), língua, gênero, nacionalidade, alinhamento político, etc. As possibilidades são tamanhas que se gerou um escândalo em torno da otimização na divulgação de propaganda política organizada pela empresa britânica Cambridge Analytica, atividade que teve resultados significativos na mobilização de apoiadores para votações importantes como a da saída do Reino Unido da União Europeia.
Esse aprimoramento do modelo iniciado na televisão aberta, porém, não foi a única “inovação” das redes sociais. Facebook, Twitter, Reddit, Twitch e até mesmo um buscador como o Google, ao contrário das emissoras de televisão, não precisam gerar conteúdo para vender seus usuários às grandes corporações. O conteúdo é criado pelos próprios usuários, que por livre e espontânea vontade escrevem seus pensamentos sobre os mais diversos assuntos, gravam vídeos e tiram fotos gerando essa massa infindável de informação que preenche a rede mundial de computadores. Na melhor das hipóteses, o único trabalho dos monopólios é garantir a estabilidade de seus serviços em larga escala, mas uma vez resolvido o problema da escalabilidade, o valor é efetivamente gerado pelos usuários.
No caso das redes sociais, se algo é grátis, você não apenas é o produto, como é o trabalhador. Isso ocorre até mesmo em plataformas voltadas ao público infantil como a plataforma de criação de jogos Roblox, sobre a qual já escrevemos nesta coluna.
A riqueza dessas informações geradas por usuários é infindável. Ela pode ser usada não apenas para acompanhar os interesses e desejos de cada indivíduo, para fins de marketing comercial ou político, como também pode ser utilizada de base para criar enormes modelos estatísticos vulgarmente chamados de “inteligência artificial” como o ChatGPT e o Dall-E.
No dia 12 de junho, os usuários do Reddit, em particular o grupo mais dedicado deles, os moderadores das comunidades da rede social, que garantem que as discussões nos fóruns fluam sem a intervenção de robôs e outras postagens fora de tópico, finalmente perceberam que o seu trabalho é que transforma o Reddit numa empresa avaliada em mais de US$15 bilhões.
Diversas comunidades, ou subreddits, como são conhecidas na plataforma, transformaram-se em comunidades privadas nas quais apenas usuários autorizados podem publicar e ler postagens. Boa parte das 250 comunidades com maior número de usuários aderiram à “paralisação”, ainda que apenas por 48 horas, algumas delas contendo dezenas de milhões de usuários.
O motivo era simples. Na expectativa de comercializar ações no mercado financeiro, os executivos do Reddit decidiram ampliar seu controle sobre o acesso de terceiros aos dados de sua plataforma. Entre os terceiros estão aplicativos como o Apollo, forma alternativa de se usar a rede social que não exibe propagandas e outras coisas que desviam a atenção do usuário, reduzindo o lucro dos acionistas da empresa. Outro terceiro é a OpenAI, que usou os dados públicos do Reddit para treinar seu ChatGPT. Finalmente, há os próprios moderadores que utilizam a interface de programação (API) do Reddit para automatizar tarefas tediosas como bloqueio de postagens ofensivas ou repetidas, que atrapalham a comunidade.
As demais redes sociais passaram pelo mesmo processo. Facebook, Twitter e outras, na busca de controlar postagens automáticas, acesso a dados de forma automatizada e outros usos avançados, passaram a limitar ou até mesmo inviabilizar o uso de suas APIs. O propósito nada tinha a ver com a segurança e privacidade de seus usuários, que continua à venda. O propósito era que os monopólios de tecnologia tivessem o monopólio dos dados criados em suas plataformas. Após inflar sua base de usuários através da oferta de um serviço conveniente e gratuito, o Reddit agora passa pelo mesmo processo.
O “blecaute” do Reddit foi uma iniciativa contra esse controle. O movimento ainda não se politizou ao ponto de reivindicar que a rede social transforme-se num serviço público, o que seria natural dadas suas características, mas já mostra que a parcela mais avançada de seus usuários adquiriu consciência de seu valor. Aqueles que criam e moderam conteúdo nas plataformas aparentam já saber que não são usuários, mas trabalhadores desses monopólios e que, ao retirar seu trabalho, retiram automaticamente o valor gerado por essas empresas.
As dificuldades de se organizar um movimento difuso, virtual e global são imensas, mas a iniciativa dos usuários do Reddit mostra uma tendência. Essas empresas não são nada sem o conteúdo que nelas é publicado. São, na realidade, parasitas dessa riqueza, dificultando cada vez mais a comunicação entre pessoas que deveriam facilitar.
