Lendo recentemente a autobiografia de Trótski , o livro Minha Vida, um episódio narrado pelo dirigente bolchevique me chamou particularmente a atenção. Trata-se do episódio do golpe do general Kornilov, em pleno processo revolucionário em 1917.
Trótski conta detalhes interessantes e ricos em lições políticas. No momento da ofensiva golpista reacionária, Trótski estava preso. Quem o prendeu? O governo provisório, comandado por mencheviques e socialistas revolucionários (os antigos populistas), À frente dos quais se encontrava Kerenski, um governo de conciliação de classes, encurralado pelo choque crescente entre as forças revolucionárias e contrarrevolucionárias. O governo provisório havia acabado de desencadear uma onda repressiva contra os bolcheviques e os elementos revolucionários das forças armadas, logo após as jornadas de julho. As principais lideranças bolcheviques ou estavam presas, como Trótski, ou foram obrigadas a se esconder, como Lênin. Os jornais bolcheviques foram fechados e seus agitadores, presos. O governo restabeleceu a pena de morte para soldados, como uma tentativa de enfrentar, pela força bruta, o descontentamento crescente e as deserções. O golpe dos contrarrevolucionários ocorre em meio a essa situação.
Diante do golpe de Kornilov, o governo provisório, que perdia a cada dia sua já reduzida base de sustentação, não teve outro remédio que não recorrer aos soldados e marinheiros revolucionários, boa parte dos quais já sob a influência dos bolcheviques.
Trótski conta que os marinheiros de Kronstadt, embarcados no cruzador “Aurora”, enviaram uma delegação para lhe pedir um conselho: deviam proteger o Palácio de Inverno, isto é, a sede do governo provisório, ou assaltá-lo? Trótski respondeu: “Aconselhei-os a que esperassem para acertar contas com Kerenski e a desfazerem-se primeiro de Kornilov.” “Nada perderemos com isso”, completou Trótski.
Os marinheiros de Kronstadt e os soldados revolucionários seguiram o conselho de Trótski e dos bolcheviques. O episódio foi fundamental para que as massas completassem sua experiência e consolidou de vez a liderança bolchevique dentro da classe operária e dos setores militares avançados. Os bolcheviques dirigiriam a tomada do poder três meses depois.
Na sua autobiografia, Trótski expõe os seus sentimentos mais íntimos para com os mencheviques e socialistas revolucionários que dirigiam o governo provisório e haviam desferido uma ferrenha repressão e campanha de calúnias contra os bolcheviques. Ele diz: “Para falar com toda a sinceridade, os populistas e os mencheviques, pelo seu procedimento, não inspiraram senão o desejo de os ver agarrados pelo pescoço por Kornilov e fortemente sacudidos no ar. Mas era um desejo ímpio, e sobretudo pouco político.”
O desejo de ver o governo provisório destroçado pelo golpe Kornilov, Trótski considera como “pouco político”. E por quê? Porque o golpe de Kornilov não derrotaria politicamente apenas o governo provisório, mas sim todo o processo revolucionário. A vitória do golpe de Kornilov seria uma derrota política fatal para a revolução.
Saindo dos episódios revolucionários de 1917 para chegar então à luta política atual, vemos claramente que as principais organizações da esquerda estão dominadas por desejos pouco políticos. Apostam na repressão, na censura, nos ataques aos direitos democráticos, tudo porque querem ver Bolsonaro e os bolsonaristas agarrados pelo pescoço e sacudidos no ar. Desconsideram que o mecanismo ditatorial que se constrói com a sua ajuda se voltará, mais cedo ou mais tarde, contra eles mesmos e sua base, ou seja, a classe operária e as massas populares. Quando os desejos pouco políticos guiam a ação política, já sabemos o resultado: é a derrota política.